O faroeste digital e seus necessários limites
O judiciário e os operadores do direito em geral têm papel primordial no controle e criação de limites na internet
Como dizem, é na dificuldade que surgem as melhores oportunidades. Basta verificar que foram nos piores momentos causados pelas guerras que surgiram grandes invenções impulsionadoras do desenvolvimento humano.
Foi no esforço concentrado de guerra da inteligência britânica para combater os nazistas na Segunda Guerra Mundial que o matemático Alan Turing chegou ao primeiro computador da história humana.
O modo como os seres humanos se relacionam entre si foi completamente transformado por invenções como a de Alan Turing e seus desdobramentos, como a internet e, mais recentemente, as redes sociais e conteúdo digital. Hoje vivemos em um mundo interconectado, onde informações se disseminam com assustadora velocidade.
As vantagens trazidas por essas inovações são imensuráveis. No entanto, o emprego dessas ferramentas depende do usuário, que pode usá-las para diversas finalidades, inclusive para gerar lesões aos direitos fundamentais de terceiros. Quanto à internet, que permite o compartilhamento imediato de dados e de informações, suas características maximizam o potencial de geração e de propagação de danos.
Naturalmente, a lesão a direitos fundamentais não é um fenômeno recente. Ocorre que essa proliferação de lesões foi exponencialmente amplificada no atual momento digital. É tempo de metaverso, memes, cultura do cancelamento digital, Facebook, TikTok, Instagram, influenciadores digitais, monetarização das atividades online.
Direito à imagem, à propriedade intelectual e autoral, à honra, à privacidade/intimidade, liberdade de expressão, liberdade de imprensa, dignidade da pessoa humana, de resposta e ao contraditório são apenas alguns dos direitos envolvidos na selva digital, a que os cidadãos e as pessoas jurídicas estão submetidos.
Como proposta de remédio a essa doença, a autorregulação das empresas de internet e a atuação do Poder Judiciário para a proteção de direitos na esfera digital no Brasil ganham relevância.
A dificuldade do aplicador do direito é solucionar o conflito em caso de colisão de diferentes direitos, notadamente no ambiente virtual, que carece de maior regulação específica e atual, em que pese o advento de algumas leis, como o Marco Civil da Internet, a Lei do Direito de Resposta e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.
O Ministro do STJ Ricardo Cueva também aponta que o desafio que advém da proliferação dos discursos de ódio e das fake news nas redes sociais é encontrar soluções adequadas à instantaneidade da era digital e não meras transposições de técnicas de aplicação do Direito que têm origem na era analógica.
No passado, o Judiciário tinha mais tempo para reagir, pois os meios de divulgação de conteúdo eram mais lentos e concentrados, bastando um mandado judicial direcionado à um veículo de comunicação para efetiva retirada de jornal ou de revista de circulação e, assim, o caso estava, ao menos em parte, equalizado.
O problema é que na era digital, ainda que o Judiciário seja capaz de agilmente bloquear o conteúdo de uma mídia social, fato é que outra plataforma já estará divulgando as mesmas informações traduzidas para o seu público.
No ambiente onde a propagação da informação atinge velocidades surpreendentes e onde toda semana surge um novo veículo de divulgação de notícias, a competitividade predatória entre as mídias têm assumido um papel relevante nessa dinâmica. Muitas vezes a ânsia e a corrida pelo ineditismo acabam por atropelar a própria veracidade da matéria, dificultando a efetividade de uso de medidas para cumprimento da decisão judicial.
Infelizmente, não temos uma solução pronta. Um atalho talvez seja a criação de ferramentas técnicas dotadas de inteligência artificial pelo Judiciário.
Outro caminho é suprimir os subsídios financeiros percebidos pelos titulares de redes sociais, visando coibir as violações a direitos. Essa foi a via utilizada pelo TSE em procedimentos que envolviam a apuração da existência de conteúdo eminentemente político em redes sociais para fins de disseminar notícias falsas ou de forma parcial.
A acelerada e constante transformação do mundo digital dificulta a atuação efetiva do Poder Judiciário. A lesão a direitos no ambiente virtual tenciona os limites dos instrumentos processuais existentes, instiga o Juiz a adotar soluções criativas e impulsiona o Judiciário a evoluir nos seus ferramentais, como o uso de inteligência artificial, na busca de uma tutela digital efetiva e célere no mundo digital.
Afinal, se para tutelar direitos patrimoniais, por exemplo, os juízes possuem em mãos poderosos instrumentos coercitivos como o bloqueio imediato de contas bancárias, bens e direitos imóveis e móveis, dentre outros, para assegurar o cumprimento e a efetividade das decisões judiciais, porque não se poderia pensar em mecanismo similar para tutelar o direito à imagem, direito à honra, direito à privacidade/intimidade e demais direitos fundamentais inerentes à pessoa humana?
De tudo que aqui se ponderou, uma coisa é certa. Na falta de sensibilidade dos próprios atores do mundo digital, hoje completamente descentralizados, a grande mídia, o Poder Judiciário e os operadores do direito em geral possuem papel primordial no controle e criação de limites para esse contemporâneo faroeste digital, onde a retórica intimidatória encontra eco e se desconhece o conceito do contraditório, sob pena de se tornarem os próprios alvos dos duros tribunais da internet, proferidores de sentenças terminativas e irrecorríveis.
*Fonte: Valor Econômico, Editoria Legislação & Tributos, 09/12/2022.