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21 de maio de 2025

Cláusula hardship e gestão de riscos contratuais: análise a partir dos princípios da Unidroit

Georges Ghabi Hajj para o Conjur.

Em um cenário global marcado por instabilidade e eventos imprevistos, evidenciou-se a vulnerabilidade das cadeias de suprimento e a crescente necessidade de mecanismos capazes de lidar com desequilíbrios contratuais. Diante desse contexto, este artigo analisa a cláusula hardship como ferramenta de gestão de riscos, à luz dos Princípios Unidroit, examinando seus critérios de aplicação e suas funções de renegociação e adaptação para preservação do equilíbrio contratual.

A cláusula hardship insere-se no movimento de racionalização dos riscos contratuais, refletindo a crescente complexidade das relações econômicas em mercados globalizados [1]. No direito brasileiro, essa lógica se articula com o princípio da boa-fé objetiva, que impõe às partes deveres de lealdade, cooperação e probidade em todas as fases contratuais [2][3]. Incorporada de forma mais ampla a partir do Código de Defesa do Consumidor (1990), a boa-fé deixou de ter caráter meramente subjetivo, consolidando-se como instrumento de equilíbrio nas relações obrigacionais [3].

Em casos de desequilíbrio superveniente, a boa-fé impõe o dever de renegociar, mesmo sem previsão expressa, sendo sua violação considerada inadimplemento. [4] No entanto, por sua abstração, a cláusula geral pode ser insuficiente, tornando a autonomia privada essencial para gerir riscos com maior precisão. Quando as partes alocam previamente riscos previsíveis por meio de cláusulas específicas, exercem a chamada gestão positiva da álea normal, antecipando desequilíbrios e assegurando a continuidade contratual. [1]

Alternativamente, podem adotar a gestão negativa do risco, estruturando contratos intencionalmente incompletos, com aspectos em aberto a serem definidos futuramente. Essa opção confere flexibilidade para lidar com riscos não antecipados, cuja concretização demandará integração posterior conforme o procedimento previsto. [1]

Cláusula hardship

Dentre os mecanismos de gestão de riscos em contratos incompletos, destaca-se a cláusula hardship, desenvolvida no contexto dos contratos internacionais. O termo designa uma situação difícil ou penosa [5] e, no direito contratual, refere-se à alteração substancial do equilíbrio do contrato por eventos imprevisíveis supervenientes, que tornam a prestação excessivamente onerosa ou insustentável [1]. Aplica-se especialmente a contratos de execução continuada ou diferida — sobretudo os de longa duração e caráter internacional — mais expostos a riscos econômicos, políticos e jurídicos. A cláusula impõe o dever de renegociar em caso de mudanças relevantes nas circunstâncias pactuadas, mitigando o princípio do pacta sunt servanda e evitando que o ônus excessivo recaia injustamente sobre uma das partes [6].

Por instituir um procedimento de renegociação sem soluções automáticas, a cláusula hardship é característica de contratos incompletos, nos quais se opta por mecanismos de adaptação em vez da definição prévia de todas as consequências de eventos imprevisíveis. O conceito foi assimilado por diversas tradições jurídicas sob diferentes nomenclaturas — frustration of purpose (common law), imprévision (França), eccessiva onerosità sopravvenuta (Itália) [1] — e, no Brasil, pela teoria da onerosidade excessiva (artigos 478 e seguintes do Código Civil) [7]. A autonomia privada permite às partes ajustar a cláusula às especificidades do contrato, inclusive prevendo eventos previsíveis, desde que observada a lógica de continuidade do vínculo e reequilíbrio das obrigações.

Judith Martins-Costa qualifica os contratos com obrigações duradouras como “contratos evolutivos” por estarem sujeitos a transformações que afetam o equilíbrio econômico ao longo do tempo. Nesses casos, a cláusula hardship cumpre papel fundamental ao mitigar os efeitos de eventos supervenientes. Segundo a autora, ela exerce quatro funções principais: preservar o equilíbrio e a continuidade do contrato; permitir a repartição dos encargos decorrentes de mudanças imprevisíveis; evitar a extinção contratual por onerosidade excessiva; e viabilizar a reconfiguração das obrigações, nos limites da atipicidade contratual prevista no artigo 425 do Código Civil [4].

Flexibilidade
Além dessas funções, sua principal virtude é a flexibilidade: por não possuir conteúdo normativo fixo, a cláusula hardship pode ser moldada pelas partes conforme as especificidades do contrato. Essa característica foi acolhida e difundida pela Unidroit, cujos princípios — embora de natureza soft law — oferecem modelo internacionalmente reconhecido para sua aplicação [9]. Os artigos 6.2.1 a 6.2.3, inalterados desde 1994, definem o hardship como alteração substancial e imprevisível das circunstâncias que torne a obrigação excessivamente onerosa, autorizando a renegociação e, se frustrada, a adaptação ou resolução judicial ou arbitral do contrato.

Spacca
Os comentários ao artigo 6.2.1 dos Princípios Unidroit reforçam o princípio do pacta sunt servanda: as obrigações devem ser cumpridas enquanto forem exequíveis, ainda que mais onerosas. Exemplo disso é o contrato de transporte marítimo de 1990, em que a alta do combustível após a crise do Golfo não justificou reajuste, pois o risco já havia sido assumido [10]. No entanto, o próprio Unidroit admite exceções: alterações supervenientes e substanciais que comprometam o equilíbrio contratual podem justificar a revisão do contrato, caracterizando a hardship.

Conforme o artigo 6.2.2, configura-se hardship quando a prestação se torna excessivamente onerosa ou perde valor substancial, desde que o evento seja: superveniente; imprevisível; fora do controle da parte; e não assumido contratualmente.

Em obrigações mensuráveis, uma variação de 50% ou mais pode evidenciar desequilíbrio. Um exemplo é o contrato firmado em 1989 entre um comerciante da antiga Alemanha Oriental e fornecedor de país socialista: com a reunificação alemã, os bens adquiridos perderam valor comercial, ensejando o direito à revisão, salvo cláusula em sentido contrário.

Equilíbrio contratual
Para ilustrar as hipóteses que autorizam a aplicação do hardship, o Unidroit de 1994 identifica duas formas de alteração fundamental do equilíbrio contratual. A primeira ocorre quando há aumento substancial no custo de cumprimento da obrigação, como alta acentuada em insumos ou novas exigências regulatórias que encarecem a execução. A segunda refere-se à redução significativa do valor da prestação recebida, inclusive sua inutilidade, como em casos de inflação severa, proibição de uso do bem ou embargo à exportação. Essa perda de valor deve ser objetivamente mensurável, não se admitindo alegações baseadas apenas em percepções subjetivas.

O artigo 6.2.2 dos princípios Unidroit define requisitos adicionais para caracterização do hardship. O subparágrafo (a) exige que o evento, ou seus efeitos, surja após a celebração do contrato, afastando riscos já conhecidos. Por isso, aplica-se apenas a contratos de execução continuada ou diferida.

O subparágrafo exige imprevisibilidade no momento da contratação, resguardando as expectativas das partes. Alterações graduais só configuram hardship se agravadas de forma abrupta. [10] Excluem-se, assim, riscos ordinários inerentes ao tipo contratual, como a instabilidade cambial conhecida. [11].

Embora os princípios exijam imprevisibilidade, parte da doutrina admite que a irresistibilidade ou inevitabilidade, mesmo de eventos previsíveis, pode justificar a revisão contratual. Tal entendimento encontra respaldo no direito do consumidor e na teoria da base objetiva, que admite a revisão sempre que fato superveniente torne a prestação excessivamente onerosa, ainda que previsível. [12] No plano civil, a boa-fé e a função social também amparam a revisão em situações de desequilíbrio grave e inevitável.

O subparágrafo (c) do artigo 6.2.2 exige que o evento esteja fora do controle da parte prejudicada, afastando a aplicação do hardship em situações causadas ou agravadas por sua conduta. A mora, por exemplo, transfere ao devedor os riscos supervenientes, inclusive os de caso fortuito.

Risco do negócio
Também não basta que o evento afete apenas a esfera patrimonial subjetiva; é preciso que impacte objetivamente a relação contratual. Dificuldades decorrentes do chamado “risco do negócio” — como oscilações de mercado ou instabilidades típicas da atividade econômica — não configuram hardship. [2] [12]

Ilustra-se com o caso de uma greve: se provocada por falha interna do fornecedor, não justifica a cláusula. Mas se resultar de mudanças legislativas imprevisíveis, pode caracterizar desequilíbrio apto à revisão contratual.

O subparágrafo exige que o evento não tenha sido assumido, expressa ou implicitamente, pela parte prejudicada, respeitando a lógica da alocação contratual de riscos. Assim, quem pactua preço fixo em cenário de alerta inflacionário assume esse risco, ao passo que um colapso econômico inesperado pode extrapolar a álea ordinária.

Atendidos os critérios de aplicação, a cláusula hardship impõe às partes o dever de renegociar de boa-fé, visando restabelecer o equilíbrio econômico afetado por eventos supervenientes. Segundo o artigo 6.2.3 dos Princípios Unidroit, a parte prejudicada deve solicitar a renegociação sem demora e de forma fundamentada. A cláusula, por si só, não autoriza a suspensão das obrigações, e, na ausência de acordo dentro de prazo razoável, qualquer das partes pode recorrer ao tribunal.

Reconhecido o hardship, o tribunal poderá, se for razoável, extinguir ou adaptar o contrato para restabelecer o equilíbrio, com prioridade à preservação do vínculo sempre que possível.

Além disso, a aplicação da cláusula pressupõe que o contrato não contenha mecanismos automáticos de ajuste previamente pactuados. Havendo cláusula específica — como reajuste com base em índices —, impõe-se sua observância direta, dispensando a renegociação. Nesse caso, o papel do julgador limita-se a assegurar o cumprimento do pactuado, e não a revisar o contrato. [4]

Direito de renegociação
Configurada a hardship, o artigo 6.2.3(1) dos princípios assegura à parte prejudicada o direito de solicitar a renegociação. O pedido deve ser feito sem atrasos injustificados; ainda que o atraso não elimine o direito, pode influenciar a análise do desequilíbrio e de suas consequências, conforme o dever de mitigar prejuízos [12].

O subparágrafo (1) também impõe à parte prejudicada o dever de apresentar os fundamentos do pedido de renegociação, sob pena de ser desconsiderado. Tal exigência, embora expressa, decorre naturalmente do princípio da boa-fé contratual.

O subparágrafo (2) estabelece, como visto, que o pedido de renegociação não autoriza, por si só, a suspensão do cumprimento das obrigações contratuais. No entanto, o Unidroit reconhece exceções. Um exemplo é o contrato para construção de planta industrial, no qual, após a celebração, novas normas de segurança exigem equipamentos adicionais, tornando a execução mais onerosa. Nesse caso, a parte pode solicitar renegociação e suspender temporariamente a obrigação enquanto adapta-se às exigências. [10]

Apesar de a cláusula hardship não mencionar expressamente a boa-fé, os princípios impõem sua observância tanto no pedido quanto na condução da renegociação. A recusa injustificada ou a postura desleal — como propostas inviáveis ou obstrução das negociações — pode configurar inadimplemento contratual e até gerar responsabilidade por ato ilícito. [4]

O subparágrafo (3) prevê que, não havendo acordo em prazo razoável, qualquer parte poderá submeter a controvérsia à apreciação judicial ou arbitral. Isso pode ocorrer tanto por recusa injustificada quanto pela ausência de consenso. Os Princípios recomendam que as partes definam previamente o que constitui “prazo razoável” para evitar incertezas. [10]

O subparágrafo (4) estabelece duas alternativas ao juiz ou árbitro diante da confirmação de hardship: extinguir o contrato ou adaptá-lo para restabelecer o equilíbrio. A extinção reconhece os limites da atuação judicial, que não pode substituir as partes na renegociação; já a adaptação busca preservar o contrato e evitar o esvaziamento da cláusula.

Mecanismo eficiente
Para a escolha entre essas soluções, deve-se considerar: a existência de critérios objetivos no contrato; a possibilidade de intervenção de terceiro imparcial; a previsão contratual de causas e formas de modificação ou suspensão das obrigações; e o impacto da situação no programa contratual. Se o contrato ainda for útil ao credor, recomenda-se sua preservação; se houver perda de utilidade, poderá justificar-se a resolução. [4]

A cláusula hardship revela-se, enfim, como um mecanismo eficiente na gestão de riscos contratuais, permitindo a adaptação dos contratos a eventos supervenientes e imprevisíveis. Sua flexibilidade permite às partes ajustarem livremente seus contornos, reafirmando a autonomia privada. Ao garantir renegociação obrigatória e preservar a utilidade do contrato, o hardship reforça a função social do negócio jurídico e contribui para a estabilidade das relações econômicas em cenários de incerteza.

Referências
[1] BANDEIRA, Paula Greco. As cláusulas de hardship e o dever da boa-fé objetiva na renegociação dos contratos. Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, Fortaleza, v. 21, n. 3, p. 1031-1054, set./dez. 2016.

[2] TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson; BANDEIRA, Paula Greco. Fundamentos do direito civil, vol. 3 – Contratos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 101-103.

[3] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Contratos. 1ª ed. eletrônica. Rio de Janeiro: 2003. Revisto e atualizado por Regis Fichtner, p. 23.

[4] MARTINS-COSTA, Judith. A cláusula de hardship e a obrigação de renegociar nos contratos de longa duração. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 25, p. 11-39, abr./jun. 2010.

[5] CAMBRIDGE DICTIONARY. Hardship. Disponível em: https://dictionary.cambridge.org/dictionary/english/hardship.

[6] OPPETIT, Bruno, apud BAPTISTA, Luiz Olavo. Contratos Internacionais. São Paulo: Lex, 2011, p. 241-242.

[7] Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002.

[8] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento nº 2175864-86.2021.8.26.0000, São José do Rio Preto. Relator: Francisco Loureiro. Julgado em: 30 ago. 2021.

[9] OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Soft law e direito privado estrangeiro: fontes úteis aos juristas brasileiros. Migalhas, 17 jan. 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-dedireito-privado-estrangeiro/380100.

[10] UNIDROIT. Principles of International Commercial Contracts. Rome: International Institute for the Unification of Private Law, 1994. Disponível em: https://www.unidroit.org.

[11] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil – Vol. III. Atual. Caitlin Mulholland. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 70.

[12] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Contratos. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.

 

Fonte: https://www.conjur.com.br/2025-mai-18/clausula-hardship-e-gestao-de-riscos-contratuais-analise-a-partir-dos-principios-da-unidroit/

 

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