Papel do CNJ no combate à litigância abusiva: tecnologia e Resolução 159/24
Por Marcela Melichar Suassuna e Victoria de Souza Musso Ribeiro
Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça aprovou proposta de recomendação de ato normativo subscrita pelo presidente do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso, e pelo corregedor Nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell Marques, que visa à identificação, ao tratamento e à prevenção da litigância abusiva no Poder Judiciário (Recomendação CNJ no 159/2024).
A Recomendação CNJ no 159/2024 compõe a Estratégia Nacional do Poder Judiciário 2021-2026, foi instituída pela Resolução CNJ no 325/2020, que tem o objetivo de definir as diretrizes nacionais da atuação institucional dos órgãos do Poder Judiciário para o próximo sexênio. Nesse contexto, a Recomendação CNJ no 159/2024 se propõe ao estabelecimento de medidas que podem ser adotadas para coibir o desvio de finalidade no exercício do direito de acesso à justiça, contribuindo garantir a efetividade e agilidade na prestação jurisdicional.
A preocupação, de forma abrangente, com a efetivação do acesso à justiça à sociedade em geral é um dos nortes do CNJ. De fato, em um cenário de crescentes recordes de produtividade de decisões terminativas e sentenças, as estatísticas do conselho apontam, contudo, que ainda é exponencial o aumento do acervo de demandas judiciais em trâmite, de modo que a aprovação da Recomendação CNJ no 159/2024 surge justamente da necessidade de mitigar o descompasso entre o volume de processos e a capacidade do Poder Judiciário de absorvê-los.
Parte desse volume de processos pode se justificar, em certa medida, pela necessidade de desenvolvimento de estruturas dentro e fora do Poder Judiciário para decidir ou compor controvérsias. Outra parte, entretanto, ocorre pelo recurso desmedido e por vezes abusivo do Poder Judiciário, que, não raro, é acionado para a resolução de demandas frívolas, temerárias, que comprometem a boa movimentação da máquina do Poder Judiciário e a efetivação dos princípios norteadores do processo civil, notadamente o acesso da sociedade à justiça e a obtenção tempestiva e adequada de provimento jurisdicional.
E nesse sentido, o exercício abusivo do direito de acesso ao Poder Judiciário não só pode influenciar — e comprometer — a celeridade, a coerência e a qualidade da prestação jurisdicional, como também pode desvirtuar a alocação de recursos destinados à máquina judiciária, impactando o desenvolvimento econômico do país. É nesse contexto que se inserem as noções de “litigância abusiva” e “litigância predatória”, as quais a Recomendação CNJ nº 159/2024 busca combater.
Litigância abusiva versus litigância predatória
Embora sejam frequentemente tratadas como sinônimos, a litigância abusiva e a litigância predatória não se confundem, porquanto a primeira consiste em espécie do gênero da segunda. A Recomendação CNJ nº 159/2024, inclusive, trouxe essa distinção de forma expressa:
“Art. 1º. Recomendar aos(às) juízes(as) e tribunais que adotem medidas para identificar, tratar e sobretudo prevenir a litigância abusiva, entendida como o desvio ou manifesto excesso dos limites impostos pela finalidade social, jurídica, política e/ou econômica do direito de acesso ao Poder Judiciário, inclusive no polo passivo, comprometendo a capacidade de prestação jurisdicional e o acesso à Justiça.
Parágrafo único. Para a caracterização do gênero ‘litigância abusiva’, devem ser consideradas como espécies as condutas ou demandas sem lastro, temerárias, artificiais, procrastinatórias, frívolas, fraudulentas, desnecessariamente fracionadas, configuradoras de assédio processual ou violadoras do dever de mitigação de prejuízos, entre outras, as quais, conforme sua extensão e impactos, podem constituir litigância predatória.”
A partir de leitura do referido artigo 1º, caput e seu parágrafo único, é possível concluir que o CNJ enquadra a litigância predatória como um estágio mais avançado da litigância abusiva e, nesse contexto, cumprirá aos tribunais apurar quando a parte apenas se utiliza do Poder Judiciário de forma meramente abusiva de quando a pretensão formulada apresenta elementos fraudulentos aptos a se enquadrarem em conduta predatória.
Diante disso, a recomendação aprovada pelo CNJ apresentou listas exemplificativas de condutas potencialmente abusivas, de medidas judiciais a serem adotadas diante de casos concretos de litigância abusiva e de medidas recomendadas para combatê-la — em seus anexos A, B e C, respectivamente —, conferindo a discricionariedade aos tribunais para discernir o enquadramento em litigância abusiva ou em litigância predatória.
As listas constantes dos anexos, contudo, não são taxativas, mesmo porque não seria possível antever todos os cenários ou fixar com tamanha precisão aquilo que se enquadraria em cada uma. Não é possível descartar a existência de diversos meios para tentar ludibriar o Poder Judiciário, revestidos de diferentes formas e, a cada dia, os tribunais se deparam com novas condutas que apontam para o desvio de finalidade na atuação dos litigantes e que poderiam ser facilmente incluídas na lista de condutas processuais potencialmente abusivas (Anexo A).
Precisamente por esse motivo, as listas relativas às medidas judiciais a serem adotadas diante de casos concretos de litigância abusiva (Anexo B) e a lista de medidas recomendadas aos tribunais (Anexo C) também não são exaustivas, na medida em que a identificação e o combate de tais práticas também devem acompanhar a engenhosidade das partes, devendo ser efetivadas as soluções que estiverem ao alcance do Poder Judiciário para afastá-las.
São realmente positivas as diretrizes colocadas pelo CNJ para o combate da litigância abusiva e da litigância predatória. Esse objetivo, entretanto, precisa se materializar em ferramentas práticas para sua efetivação. A tecnologia, aqui, se revela como um importante aliado para o atingimento das finalidades buscadas pelo CNJ.
Uso da tecnologia para combate à litigância abusiva
A Corregedoria Nacional de Justiça tem estabelecido, em parceria com as corregedorias gerais de Justiça, metas e diretrizes estratégicas para a atividade correicional dos tribunais, a fim de contribuir para o aperfeiçoamento da atividade jurisdicional e das serventias extrajudiciais. Por isso foram redigidas as chamadas “Metas e Diretrizes Estratégicas das Corregedorias” ou simplesmente “Diretrizes Estratégicas”, que são discutidas e deliberadas entre as corregedorias.
No que pertine à litigância abusiva e predatória, estão inseridas a Diretriz Estratégica no 7/2023 das Corregedorias e, mais recentemente, da Diretriz Estratégica no 6/2024, dentro das quais se reforça o papel do CNJ de implementar ferramentas para auxiliar os tribunais na identificação de condutas possivelmente predatórias de forma sistematizada e atualizada.
Nesse contexto, se insere o chamado “Painel de Rede de Informações” relacionadas à litigância abusiva. O painel contempla informações oriundas dos órgãos responsáveis pelo monitoramento e pela fiscalização das boas práticas processuais em demandas judiciais, bem como dispõe do contato de cada unidade responsável. Assim, a ferramenta não só permite que os dados sejam avaliados em uma perspectiva mais ampla, inclusive por meio de estatísticas originadas a partir desses dados, como também facilita a rápida interlocução de informações entre os tribunais.
Antes da instalação do painel, a identificação das condutas predatórias era mais facilmente visualizada em comarcas de vara única — em que todas as demandas são distribuídas a um único magistrado, que concentra a análise de todas as pretensões. No entanto, em uma perspectiva macro de processos em várias comarcas, dentro de uma perspectiva estadual ou mesmo a nível federal, a identificação ainda era complexa e de difícil implementação.
Com a adoção da nova ferramenta, por outro lado, a alimentação periódica do painel enseja a troca de informações acerca de características potencialmente abusivas e predatórias entre varas e comarcas de diferentes estados.
Com efeito, há determinados atos que podem ser vistos como lícitos quando isoladamente considerados, mas, quando observados em conjunto e/ou ao longo do tempo, podem indicar desvio de finalidade passível de reprimenda. Daí porque a concatenação das informações em uma só plataforma representa avanço considerável para o combate das práticas abusivas, já que possibilita a visualização litigiosidade abusiva em perspectiva nacional e atualizada.
A tecnologia, então, surge como aliada das corregedorias, na medida em que os sistemas processuais eletrônicos permitem “o acompanhamento visual da distribuição em tempo real de ações idênticas ou similares ou que apresentem indícios de litigância abusiva” (item 3 do Anexo C da Recomendação no 159/2024), porquanto a integração de bases de dados e sistemas de controle processual entre tribunais, órgãos do sistema de justiça e instituições afins, enseja a identificação de “eventual migração da litigância abusiva entre regiões do país, padrões similares de atuação e repetição de processos em diferentes tribunais” (item 4 do Anexo C da Recomendação nº 159/2024).
Os significativos esforços do CNJ para a detecção de indícios de litigância abusiva e para a sua eliminação ou, no mínimo, redução, buscam, derradeiramente, a pacificação social e o desenvolvimento do país, sobretudo ante o considerável dispêndio desnecessário de recursos com o processamento de demandas judiciais sem qualquer lastro, onerando a máquina do Poder Judiciário e podendo comprometer a qualidade e a tempestividade da prestação jurisdicional.
A sobrecarga do Poder Judiciário com a tramitação de ações eivadas de desvio de finalidade não só demanda a alocação de recursos, como também de pessoas. A rigor, as práticas abusivas e condutas predatórias nos feitos judiciais acaba por aumentar os custos processuais — já que implica a maior destinação de verba para a manutenção de todo o sistema —, como também de impacta a qualidade e a celeridade do serviço prestado por magistrados e servidores, além de prejudicar sobremaneira o acesso à justiça àqueles que fazem jus à prestação jurisdicional.
A atuação do CNJ e dos tribunais, portanto, deverá ponderar o direito à justiça no sentido de garantir o exercício legítimo do direito de ação, mas coibir quando há o seu abuso e o seu desvio de finalidade. O maior desafio às corregedorias é, enfim, garantir que as medidas adotadas para o combate a litigância abusiva sejam efetivas no sentido de restabelecer a fé na máquina judiciária, de modo que a experiência e a discricionariedade dos magistrados e servidores na identificação de tais práticas e no seu combate se mostra como o principal trunfo para concretizar esse objetivo.
Leia o artigo também no Conjur: https://www.conjur.com.br/2024-dez-05/papel-do-cnj-no-combate-a-litigancia-abusiva-tecnologia-e-resolucao-159-24/