Marcus Lívio Gomes e João Pedro de Paula Santos Guimarães
A promulgação da Lei Complementar nº 214/2025 marca uma nova etapa no processo de implementação da reforma tributária, notadamente em relação à adoção do princípio da tributação no destino para evitar a guerra fiscal entre os estados. No entanto, alguns tipos de operação poderão ser autuados se não realizados corretamente, como é o caso das operações de importação por conta e ordem de terceiros, especialmente nos casos em que houver a remessa interestadual do bem.
O que acontece com as alterações promovidas pela nova legislação quanto à tributação no destino e seus efeitos sobre as operações de importação por conta e ordem, bem como eventual redução da carga tributária nos casos em que houver a remessa interestadual do bem ou mercadoria para o estado em que situado o destinatário jurídico da importação, em comparação com a sistemática pré-reforma.
Também existem eventuais problemas que possam ocorrer a partir da inexatidão das informações prestadas na documentação fiscal de tais operações, principalmente as interpretações divergentes dos entes federativos, considerando que, até 2033, o sistema antigo e o sistema novo coexistirão no direito tributário brasileiro.
Operações de importação por conta e ordem: pré-reforma tributária
As operações de importação por conta e ordem de terceiros ocorrem quando um intermediário (adquirente) realiza, em nome próprio, a aquisição de bens ou serviços para o destinatário final (tomador) do bem ou mercadoria, que é um terceiro que suporta os efeitos econômicos da operação.
Nesse tipo de importação, é comum a utilização de trading company para intermediar a operação, que atua em nome próprio na realização do despacho aduaneiro do bem ou mercadoria importada por outra pessoa jurídica, além de estar autorizada a realizar a intermediação comercial e o pagamento ao fornecedor estrangeiro, nos termos da IN RFB nº 1.861/2018:
“Art. 2º Considera-se operação de importação por conta e ordem de terceiro aquela em que a pessoa jurídica importadora é contratada para promover, em seu nome, o despacho aduaneiro de importação de mercadoria de procedência estrangeira adquirida no exterior por outra pessoa, física ou jurídica.”
No primeiro momento da operação, a importação da mercadoria é realizada em nome da trading company, já que esta é a responsável pelo despacho aduaneiro e o cumprimento das demais obrigações acessórias.
Isso porque a Lei Kandir (LC nº 87/1996) dispõe, em seu artigo 12, que se considera ocorrido o fato gerador do ICMS quando ocorre o desembaraço aduaneiro de mercadorias ou bens importados do exterior, sendo esse o momento em que nasce a obrigação de pagamento do tributo:
“Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:
IX – do desembaraço aduaneiro de mercadorias ou bens importados do exterior;”
Tal conclusão é corroborada pelo artigo 4º da Lei Kandir, que dispõe que o sujeito passivo do ICMS é qualquer pessoa que realize, com habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial, operações de circulação de mercadorias, inclusive as provenientes do exterior.
Em relação à cobrança do ICMS, a Lei Kandir, em seu artigo 11, dispõe que o sujeito ativo da obrigação tributária é o estado em que estiver localizado o estabelecimento onde ocorrer a entrada física do bem:
“Art. 11. O local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do imposto e definição do estabelecimento responsável, é:
I – tratando-se de mercadoria ou bem:
d) importado do exterior, o do estabelecimento onde ocorrer a entrada física;”
Diante da intensa guerra fiscal e múltiplas interpretações adotadas pelos Estados sobre o “estabelecimento onde ocorrer a entrada física”, o STF, por meio do ARE nº 665.134, pacificou a questão, fixando a tese do tema 520:
“O sujeito ativo da obrigação tributária de ICMS incidente sobre mercadoria importada é o estado-membro no qual está domiciliado ou estabelecido o destinatário legal da operação que deu causa à circulação da mercadoria, com a transferência de domínio.”
A tese fundamenta a declaração de inconstitucionalidade parcial do artigo 11, I, ‘d’, da Lei Kandir, na medida em que definia o estabelecimento da “entrada física” de mercadorias ou bens importados como o local da operação ou da prestação, para fins de tributação do ICMS devido na importação.
No mencionado julgamento, o ministro Edson Fachin fundamentou que, na importação por conta e ordem de terceiro, a destinatária jurídica é quem dá causa à operação de importação, ou seja, a parte contratante de do serviço a ser prestado pela importadora.
Portanto, com base no Tema 520, os contribuintes deverão recolher o ICMS para o estado destinatário do bem, e não para o estado onde ocorrer o desembaraço aduaneiro (normalmente o estado em que situado a trading company — por motivos de aproveitamento de eventual benefício fiscal).
Além disso, na remessa do bem ou mercadoria para outro estado da federação, haverá a incidência do ICMS Difal, cuja responsabilidade pelo recolhimento é do destinatário da mercadoria quando este for contribuinte, ou ao remetente quando o destinatário não for contribuinte, nos termos do inciso VIII do artigo 155, § 2º da Constituição.
No caso específico das importações, o ICMS Difal também incide sobre a entrada de bem ou mercadoria importada, cabendo o tributo ao Estado onde estiver situado o domicílio ou estabelecimento destinatário da mercadoria, nos termos do artigo 155, § 2º, IX, ‘a’ da Constituição.
Feitas tais considerações, pode se dar, como exemplo, o seguinte cenário, elaborado considerando as regras do sistema pré-reforma tributária:
Empresa A (destinatária jurídica da mercadoria) contrata a empresa B (trading company) para realizar a importação de um bem ou mercadoria da Empresa C, situada no exterior. A Empresa B, após o desembaraço aduaneiro, recolherá o ICMS devido ao estado de destino.
Se a empresa B desembaraçar o bem ou mercadoria no seu próprio Estado (caso em que a entrega não ocorra diretamente na empresa A) de modo que tal remessa para a empresa A seja interestadual, poderá haver a cobrança do ICMS-Difal.
Em síntese, no sistema antigo, na operação de importação por conta e ordem de terceiros, é possível concluir que:
- há a incidência do ICMS no momento do desembaraço aduaneiro, cuja responsabilidade de pagamento é da trading company ao estado do destinatário jurídico da mercadoria nas operações por conta e ordem de terceiros, nos termos do que restou decidido no ARE nº 665.134 (Tema 520); e
- poderá haver a incidência do ICMS-Difal em eventual remessa interestadual, caso a mercadoria seja remetida do Estado em que houver o desembaraço ao estado de destino, que deverá ser pago pelo destinatário (contribuinte) ou remetente (quando o destinatário não for contribuinte).
Logo, a operação pode ser resumida da seguinte forma: pagamento do ICMS ao Estado de destino e eventual incidência do ICMS-Difal pela remessa interestadual, de modo que o sujeito passivo dependerá da condição de contribuinte ou não contribuinte do destinatário.
Tributação no destino prevista na Lei Complementar nº 214/25
No sistema inaugurado pela reforma tributária, o fato gerador do IBS e da CBS, nos termos do artigo 10 da LC nº 214/2025, ocorre no momento do fornecimento nas operações com bens ou serviços:
“Art. 10. Considera-se ocorrido o fato gerador do IBS e da CBS no momento do fornecimento nas operações com bens ou com serviços, ainda que de execução continuada ou fracionada.”
Em relação às importações, o parágrafo único do artigo 72 da LC nº 214/2025 considera contribuinte a pessoa jurídica que promove a entrada de bens materiais de procedência estrangeira no território nacional, ao considerá-lo como adquirente:
“Art. 72. É contribuinte do IBS e da CBS na importação de bens materiais:
I – o importador, assim considerado qualquer pessoa ou entidade sem personalidade jurídica que promova a entrada de bens materiais de procedência estrangeira no território nacional; e
Parágrafo único. Na importação por conta e ordem de terceiro, quem promove a entrada de bens materiais de procedência estrangeira no território nacional é o adquirente dos bens no exterior.”
Como se verifica, a trading company permanece sendo obrigada ao recolhimento dos tributos nos casos de importação por conta e ordem de terceiros, pois promove o fato gerador e é legalmente considerada contribuinte pela LC nº 214/2025, conforme ocorre no sistema antigo.
No entanto, no âmbito da reforma tributária, a tributação foi expressamente deslocada para o destino, de modo que o tributo é devido ao ente federativo onde ocorre o consumo (destino da operação). Esse princípio já era parcialmente aplicado ao ICMS nas operações interestaduais, mas é consolidado pós-reforma tributária, visando a correção de distorções na distribuição da arrecadação e a redução da guerra fiscal.
No novo sistema, o artigo 11 da LC nº 214/2025 dispõe que:
“Art. 11. Considera-se local da operação com:
I – bem móvel material, o local da entrega ou disponibilização do bem ao destinatário;
§ 1º Para fins do disposto no inciso I do caput deste artigo:
I – em operação realizada de forma não presencial, assim entendida aquela em que a entrega ou disponibilização não ocorra na presença do adquirente ou destinatário no estabelecimento do fornecedor, considera-se local da entrega ou disponibilização do bem ao destinatário o destino final indicado pelo adquirente:
a) ao fornecedor, caso o serviço de transporte seja de responsabilidade do fornecedor;”
Especificamente em relação à importação, no novo sistema, o artigo 68 da LC nº 214/2025 determina o local da importação de bens materiais:
“Art. 68. Para efeitos do IBS e da CBS incidentes sobre as importações de bens materiais, o local da importação de bens materiais corresponde ao:
I – local da entrega dos bens ao destinatário final, nos termos do art. 11 desta Lei Complementar, inclusive na remessa internacional;”
A partir da análise dos mencionados artigos, é possível concluir que:
- O local da operação que envolva bem móvel material é o local da entrega ou disponibilização ao destinatário e, no caso das importações, o local da entrega ao destinatário final;
- Em caso de operações realizadas de forma não presencial, assim entendida aquela em que a entrega ou disponibilização não ocorra na presença do adquirente ou destinatário no estabelecimento do fornecedor, o local da entrega é aquele que for indicado pelo adquirente ao fornecedor.
Considerando que as operações de importação por conta e ordem de terceiros demandam o transporte do bem adquirido da pessoa adquirente ao destino final, sem a presença no estabelecimento, é possível concluir que tais operações podem ser enquadradas na alínea a), do inciso I, do § 1º do artigo 11 da LC nº 214/2025.
Nesse ponto, torna-se imprescindível a correta indicação do local da entrega ao fornecedor, uma vez que será com base nessa informação que a tributação ocorrerá, o que poderá evitar eventuais questionamentos, fiscalizações e autuações por parte do Fisco.
Como se observa, a obrigação da trading company em recolher o tributo devido ao Estado de destino permanece, com normas mais claras e expressas que preveem essa sistemática (ao contrário das operações submetidas ao ICMS, que demandaram pronunciamento do STF por meio do ARE nº 665.134 — Tema 520).
Por outro lado, existe responsabilidade dos adquirentes em indicar corretamente o destino final ao fornecedor para fins de emissão da documentação fiscal e, consequentemente, evitar questionamentos por parte da fiscalização. Como exemplo, o fornecimento incorreto do local da entrega que pode ensejar a tributação por mais estados do que os efetivamente envolvidos na operação.
Assim, as principais diferenças, portanto, são duas: em relação ao local do destino em operações realizadas de forma não presencial, a correta indicação do local da entrega para fins de tributação; e as remessas interestaduais de bem ou mercadoria importada por conta e ordem poderão ser desoneradas, uma vez que, com a extinção do ICMS, é possível concluir que a figura do Difal também será extinta, o que pode configurar uma redução na tributação incidente nas operações em que o destinatário final da mercadoria se encontre em estado diverso em que houver o desembaraço aduaneiro.
Questões a serem dirimidas no âmbito da reforma tributária
Para o novo sistema funcionar de forma plena, é necessário que a operação de importação por conta e ordem de terceiros identifique corretamente o destinatário jurídico da mercadoria e o local do destino para fins de cobrança e recolhimento dos tributos devidos, considerando, ainda, a coexistência do ICMS e demais tributos do sistema antigo até o ano de 2033 com o IBS e a CBS, o que demandará que as operações sigam dois modelos de tributação.
Nos casos em que não houver a correta identificação do destino, existe a possibilidade de que os fiscos interpretem que o IBS e CBS são devidos ao estado em que houver o desembaraço aduaneiro, ou em Estado diverso do que está situado o consumidor final, de modo que a fiscalização poderá concluir que existiram mais etapas tributáveis do que realmente ocorreu.
Eventuais inconsistências na documentação fiscal poderão ocasionar a bitributação, glosas de crédito e autuações que se agravarão durante o período de transição, o que levará ao aumento do contencioso administrativo e judicial, especialmente sobre o local do fato gerador, a responsabilidade tributária das tradings companies, a incidência dos tributos a depender das informações constantes na documentação fiscal e eventuais problemas relacionados à base de cálculo em operações complexas.
Logo, é necessário que se reforce as estratégias de compliance, bem como o correto preenchimento das notas fiscais emitidas para as operações e investimento em tecnologia que adapte o sistema cenário inaugurado pela reforma tributária, sem perder de vista o monitoramento de novos atos normativos e alterações na legislação.
Inclusive, a regulamentação do tema será primordial para manter a regularidade das operações, que também deverá observar a jurisprudência que se formará com o funcionamento do Comitê Gestor.
Diante desse cenário, é possível concluir que a reforma tributária demandará investimento em tecnologia e a adequação dos sistemas pré-existentes ao novo cenário, uma vez que o sucesso do novo sistema dependerá da harmonização interpretativa, da infraestrutura fiscal digital dos contribuintes e dos fiscos e da atuação coordenada entre os entes federativos para que as operações sejam tributadas da forma correta, sem perder de vista o compliance fiscal e o monitoramento de alterações legislativas pertinentes ao tema.
Leia a matéria também o site do Conjur: https://www.conjur.com.br/2025-set-09/do-icms-ao-ibs-cbs-como-a-reforma-tributaria-impacta-a-importacao-por-conta-e-ordem-de-terceiros/