A navegação na cabotagem e o uso de embarcações sustentáveis
RESUMO
Diante do cenário de mudanças climáticas e da busca por uma economia de baixo carbono, a utilização de embarcações sustentáveis tem ganhado protagonismo no setor de transportes, inclusive na navegação de cabotagem. A regulamentação nacional evolui gradualmente no sentido de estimular a adoção desse modal, mas ainda carece de definições objetivas quanto ao enquadramento de embarcações verdes. O presente artigo analisa a definição, características e gargalos normativos relacionados à utilização dessas embarcações na cabotagem brasileira.
Palavras-chave: Navegação. Cabotagem. Embarcações. Sustentabilidade. Descarbonização.
INTRODUÇÃO
O atual contexto de descarbonização da economia global, em consonância com compromissos assumidos pelo Brasil em tratados internacionais, como o Acordo de Paris[3], tem impulsionado os setores de infraestrutura e logística a incorporarem práticas mais sustentáveis. Nesse cenário, a cabotagem – transporte de cargas entre portos nacionais por vias marítimas e interiores – surge como alternativa segura, econômica e ambientalmente eficiente.
Com dimensões continentais e uma extensa costa marítima, o Brasil possui elevado potencial para expandir a cabotagem, diversificando sua matriz de transportes, ainda fortemente dependente do modal rodoviário. Contudo, para que esse avanço ocorra de forma sustentável, é necessário superar barreiras jurídicas e regulatórias.
Nesse sentido, o Decreto nº 12.555, de 16 de julho de 2025, ao regulamentar aspectos da navegação de cabotagem, introduziu de forma expressa o incentivo ao uso de embarcações sustentáveis. Todavia, deixou de estabelecer critérios técnicos objetivos necessários para tal classificação, a serem futuramente detalhados em portaria.
O presente artigo busca examinar a regulação nacional da cabotagem, discutir as lacunas normativas acerca da definição de embarcações sustentáveis e propor parâmetros que, alinhados a experiências internacionais, possam orientar a implementação efetiva de uma frota mais verde no país.
NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM
A cabotagem, cuja origem etimológica remonta ao francês cabotage, derivado do verbo caboter, significa navegar próximo à costa ou “de cabo em cabo”, isto é, advém da navegação costeira acompanhando os relevos litorâneos.
No Brasil, a cabotagem remonta à colonização, quando o mar funcionava como principal via de integração territorial, restrita a embarcações portuguesas sob controle da Coroa, tendo sido ampliada com a Abertura dos Portos em 1808. No século XIX, consolidou-se como eixo fundamental da circulação de mercadorias e pessoas, sendo formalmente disciplinada pelo Código Comercial (1850). Gradualmente, a cabotagem adquiriu também um significado jurídico e comercial vinculado ao transporte marítimo realizado entre portos do País, em contraposição à navegação de longo curso, destinada à conexão entre nações (BRENTANO, 2025).
Atualmente, a navegação de cabotagem é definida pela Lei 9.432, de 8 de janeiro de 1997, em seu art. 2º, inciso IX, como aquela “realizada entre portos ou pontos do território brasileiro, utilizando a via marítima ou esta e as vias navegáveis interiores”.
Assim, considerando que o Brasil conta com aproximadamente 8 mil quilômetros de costa marítima (SCHÖNER, 2023), caracterizado por uma grande concentração populacional litorânea, a movimentação de mercadorias e commodities por meio do transporte aquaviário utilizando a cabotagem se apresenta como alternativa logística cada vez mais atraente para os usuários (LAUNÉ; SILVERA JR, 2024, p. 3).
Isso porque a cabotagem apresenta uma série de benefícios que a tornam um modal estratégico. Conforme pontuam Machado, Soute e De Carvalho (2021), entre suas principais vantagens, sobressaem-se a elevada eficiência energética, a capacidade de movimentar grandes e diferentes volumes em longas distâncias. Além disso, o modal apresenta menor índice de acidentes, reduzindo taxas de avarias e custos operacionais em comparação a outros meios de transporte. Do ponto de vista socioeconômico e ambiental, contribui para a diminuição da emissão de poluentes, para a redução de congestionamentos viários e para a menor necessidade de investimentos em infraestrutura. Dessa forma, a cabotagem mostra-se não apenas como uma alternativa de baixo custo e alto desempenho logístico, mas também como instrumento relevante para a sustentabilidade do sistema logístico.
Diante dessas características e em linha com os compromissos ambientais assumidos no âmbito da COP21, foi publicada a Lei 14.301, de 7 de Janeiro de 2022, instituindo o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem, popularmente conhecido como Br do Mar, com os objetivos de ampliar a oferta e melhorar a qualidade do transporte por cabotagem; incentivar a concorrência e a competitividade neste modal; ampliar a frota na cabotagem e desenvolver a indústria naval; capacitar marítimos nacionais, dentre outros.
Mais recentemente, o Ministério de Portos e Aeroportos (“MPOR”) publicou o Decreto nº 12.555, de 16 de julho de 2025, implementando novos quesitos para afretamento de embarcações – desde que sustentáveis – para a navegação de cabotagem.
Percebe-se, portanto, que o estímulo ao modal vem sendo associado, cada vez mais, à agenda de descarbonização e de promoção da sustentabilidade. Faz-se necessário, então, analisar em maior profundidade as premissas estabelecidas pelo Decreto, notadamente quanto à conceituação legal das chamadas embarcações verdes.
DECRETO 12.555/2025: EMBARCAÇÕES SUSTENTÁVEIS E DESAFIOS REGULATÓRIOS
O Decreto nº 12.555/2025 introduziu incentivo ao uso de embarcações verdes, com destaque para aquelas relacionadas ao afretamento de embarcações estrangeiras. Nos termos do parágrafo único do art. 2º, consideram-se embarcações sustentáveis aquelas “cujo uso e operação observem as dimensões ambiental e social, priorizando o uso de fontes de energia menos poluentes e ambientalmente eficientes, e que observem o trabalho digno e não discriminatório”.
Apesar dessa conceituação, observa-se que seu teor permanece genérico, uma vez que o normativo não estabelece características técnicas ou requisitos objetivos para a classificação de uma embarcação como sustentável. Essa definição foi delegada a futura portaria, destinada a detalhar as diretrizes e critérios aplicáveis às embarcações verdes na cabotagem.[4].
Outrossim, embora a cabotagem seja, por definição legal, modalidade de navegação de caráter nacional, sua regulação não pode ser dissociada do contexto internacional. As diretrizes externas fornecem subsídios relevantes para a construção de parâmetros internos de enquadramento de embarcações sustentáveis.
Nesse sentido, destaca-se a recente aprovação pela Organização Marítima Internacional (IMO) do Net-Zero Framework – marco regulatório que altera a Convenção Internacional para Prevenção da Poluição por Navios (MARPOL) e estabelece a meta de neutralidade de emissões até 2050. O novo regime combina a definição de um padrão global de combustíveis, incentivando o uso de alternativas menos poluentes, com a criação de um mecanismo de precificação de emissões apoiado pelo IMO Net-Zero Fund, voltado ao fomento de combustíveis verdes, ao financiamento de países em desenvolvimento e ao estímulo à inovação tecnológica (NEVES; RODRIGUES, 2025).
A efetividade das metas de descarbonização, entretanto, depende da articulação entre regulação, incentivos financeiros e avanços tecnológicos, de modo a viabilizar soluções competitivas e economicamente viáveis. Nesse contexto, embora o ordenamento jurídico brasileiro ainda não tenha consolidado os critérios objetivos para a definição de embarcações sustentáveis, é possível recorrer a diretrizes internacionais, como as da IMO, ou a padrões voluntários de certificação já consolidados no transporte aquaviário, a exemplo do Lloyd’s Register, Green Award e American Bureau of Shipping (ABS).
Diversos parâmetros poderão ser adotados nacionalmente para o enquadramento de embarcações como sustentáveis. De forma geral, tais parâmetros podem ser agrupados em duas dimensões principais:
1.Dimensão Ambiental: Inclui práticas e tecnologias destinadas a reduzir emissões, melhorar a eficiência energética e proteger os ecossistemas marinhos, como:
- Eficiência energética e redução de emissões: implementação de índices de eficiência energética para novas embarcações; uso de combustíveis de baixo carbono (GNL, metanol, hidrogênio, amônia verde); adoção de tecnologias inovadoras;
- Controle de poluentes atmosféricos: atendimento às normas da Convenção MARPOL, incluindo limites de emissão de poluentes e material particulado; bem como a utilização de combustíveis com baixo teor de enxofre.
- Gestão de resíduos e efluentes: implantação de sistemas eficazes de tratamento de águas de lastro e esgoto, além da coleta, armazenamento e descarte adequado de resíduos sólidos e oleosos.
- Projeto e construção ecológica: adoção de materiais de menor impacto ambiental (recicláveis ou de baixa emissão), design hidrodinâmico para redução de arrasto e consumo, e planejamento para descomissionamento sustentável (Ship Recycling).
- Digitalização e monitoramento ambiental: instalação de sensores para monitoramento contínuo do desempenho energético e uso de inteligência artificial para otimização de rotas e consumo.
2. Dimensão Social: Engloba práticas que, além de reduzir impactos ambientais, promovem benefícios sociais, em especial na valorização do trabalho digno e da equidade:
- Requisitos Sociais e Institucionais: condições adequadas de trabalho e segurança da tripulação (salários dignos, jornadas razoáveis, alojamentos adequados, segurança do trabalho), associadas a políticas de inclusão, diversidade e bem-estar físico e mental.
- Cadeia de suprimentos responsável: seleção de fornecedores comprometidos com boas práticas ambientais e sociais, assegurando transparência nos processos de construção e manutenção.
Esses parâmetros funcionam como balizas interpretativas na ausência de regulamentação nacional específica, servindo ainda como catalisadores para a modernização da frota, para a adoção de combustíveis alternativos e para a mitigação das externalidades negativas do transporte marítimo, notadamente na cabotagem, setor estratégico para a logística nacional.
Contudo, para garantir segurança jurídica a investidores e usuários da cabotagem, torna-se imprescindível que a regulação nacional avance no estabelecimento de critérios claros, objetivos e acessíveis para a classificação das embarcações sustentáveis.
Essa medida fortalecerá a governança setorial e ampliará a atratividade de investimentos na frota dedicada à cabotagem, favorecendo o crescimento contínuo dessa modalidade e sua consolidação como eixo relevante da matriz logística brasileira.
CONCLUSÕES
A navegação de cabotagem, historicamente relevante para a integração territorial e econômica do Brasil, é um modal estratégico para a construção de uma matriz logística mais equilibrada, eficiente e sustentável. Seus atributos intrínsecos conferem-lhe papel central na agenda de descarbonização e na transição energética do setor de transportes.
Contudo, para que a cabotagem avance em consonância com as metas globais de neutralidade climática, torna-se imprescindível a criação de um marco regulatório claro e consistente para as chamadas embarcações sustentáveis. O Decreto nº 12.555/2025 sinaliza avanço ao inserir a temática na política nacional, mas ainda carece de detalhamento técnico e normativo, a ser definido em regulamentações complementares. A ausência de critérios objetivos pode gerar insegurança jurídica e retardar investimentos essenciais à modernização da frota.
Nesse cenário, diretrizes da IMO e padrões reconhecidos internacionalmente, constituem referências relevantes para a formulação de parâmetros nacionais. Portanto, consolidar uma regulação robusta e transparente é medida essencial para transformar a cabotagem em vetor da transição energética no setor marítimo. Ao alinhar-se às melhores práticas internacionais e às exigências de sustentabilidade, o Brasil não apenas reforça sua posição nos compromissos globais de mitigação climática, como também fortalece sua soberania logística, atrai investimentos, impulsiona a indústria naval e abre caminho para a criação de rotas verdes que estabeleçam o modal como protagonista de um sistema de transportes mais moderno, eficiente e sustentável.
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Lei 9.432, de 8 de janeiro de 1997. Dispõe sobre a ordenação do transporte aquaviário e dá outras providências. Brasília, 1997.
BRASIL. Lei 14.301, de 7 de janeiro de 2022. Institui o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem (BR do Mar). Brasília, 2022.
BRASIL. Decreto nº 12.555, de 16 de julho de 2025. Dispõe sobre as regras, os critérios e os procedimentos a serem observados pelas pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, para a implementação, a habilitação, a execução e o monitoramento do Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem – BR do Mar, de que trata a Lei nº 14.301, de 7 de janeiro de 2022, e regulamenta disposições da Lei nº 9.432, de 8 de janeiro de 1997, e da Lei nº 10.893, de 13 de julho de 2004. Brasília, 2025.
BRENTANO, Patrícia Lia. O que é cabotagem?. A Tribuna, 2025. Disponível em: < https://www.atribuna.com.br/opiniao/patricia-lia-brentano/o-que-e-cabotagem-1.476376>. Acesso em 31 de agosto de 2025.
DE CARVALHO, Marcelo Almeida. Navegação da cabotagem para o transporte de cargas: História, desafios, regulação e futuro. Monografia de conclusão de curso submetida ao Instituto Serzedello Corrêa do Tribunal de Contas da União como requisito parcial para a obtenção do grau de especialista Controle da Desestatização e da Regulação. Brasília, 2023. Disponível em < https://sites.tcu.gov.br/recursos/trabalhos-pos-graduacao/pdfs/Navegação%20de%20cabotagem%20para%20o%20transporte%20de%20cargas_%20história,%20desafios,%20regulação%20e%20futuro.pdf>. Acesso em 29 de agosto de 2025.
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MACHADO, Maykon Fagundes; SOUTO, Sabine Mara Müller; DE CARVALHO, Sonia Aparecida. Navegação de cabotagem no Brasil e seus desafios na matriz de transportes. Revista de Direito e Negócios Internacionais da Maritime Lay Academy – MLAW. Vol. 1, nº 2, Julhoa Dezembro-2021. pp 123-144. 2021. Disponível em < https://mlawreview.emnuvens.com.br/mlaw/article/view/37/104>. Acesso em 20 de agosto de 2025.
NEVES, Nathália Caroline Fritz; RODRIGUES, Caroline de Lima. Oportunidades, inventivos e desafios à descarbonização no setor de cabotagem brasileiro. Regulação em Movimento: descarbonização, resiliência climática, novas tecnologias e IA nos setores regulado. Curitiba, 2025.
SCHÖNER, Karin. Cabotagem: caminho sustentável para o crescimento de cargas no Brasil. Revista Portos e Navios, 2023. Disponível em < https://www.portosenavios.com.br/artigos/artigos-de-opiniao/artigo-cabotagem-caminho-sustentavel-para-o-crescimento-do-transporte-de-cargas-no-brasil>. Acesso em 31 de agosto de 2025.
UNFCCC. Acordo de Paris. Adotado pela Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas -COP21, 2015. Disponível em: <www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/sirene/publicacoes/acordo-de-paris-e-ndc/arquivos/pdf/acordo_paris.pdf>. Acesso em 31 de agosto de 2025;
UNITED NATIONS. IMO agrees on zero emissions shipping regulations. UN News, 2025. Disponível em: <https://news.un.org/en/story/2025/04/1162176>. Acesso em: 9 jul. 2025.
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[1] Sócia do Salomão Advogados. LLM em Direito Marítimo pela Universidade de Southampton (Inglaterra). Especializada em Direito Marítimo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Especializada em Direito do Petróleo pelo IBP. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV/ES). Membro da Comissão de Direito Marítimo e Portuário do Conselho Federal da OAB e Vice-Presidente da Comissão de Direito Marítimo, Portuário e do Mar da OAB/RJ.
[2] Advogada no Salomão Advogados. Bacharela em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – Ceub. Pós-graduada em Direito Administrativo pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP. Secretária Geral Adjunta da Comissão de Direito Marítimo e Portuário da OAB/DF.
[3] UNFCCC. Acordo de Paris. Adotado pela Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP21), em 12 de dezembro de 2015.
[4] Art. 2º Compete ao Ministério de Portos e Aeroportos: […] VI: estabelecer, ouvido o Ministério de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, as diretrizes e os critérios para o afretamento de embarcações sustentáveis;



