Isenção da anuidade da OAB a advogados com deficiência: Entre a justiça contributiva e a inclusão plena
Por Paulo Cesar Salomão Filho e Ana Carolina do Couto e Silva
A obrigação de contribuição anual à OAB, prevista no art. 47 da lei 8.906/1994, deve ser interpretada de forma teleológica e compatível com o ordenamento constitucional, especialmente à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da isonomia. Embora seja necessário uniformizar a política nacional de concessão de descontos e isenções para evitar distorções e impactos orçamentários no sistema da OAB1, não se pode impor a integralidade dessa contribuição a advogados com deficiência física parcial e permanente que comprometa sua capacidade laborativa, ainda que não os incapacite totalmente para o exercício profissional, sob pena de violação dos referidos princípios constitucionais.
A controvérsia reside na interpretação dos requisitos previstos em normativos internos da OAB, como o provimento 111/06, que tradicionalmente condiciona a concessão da isenção à completa inaptidão do profissional para o exercício da advocacia2. Tal exigência, embora juridicamente fundamentada em critérios administrativos, vem sendo progressivamente tensionada por demandas que evocam o conceito ampliado de deficiência introduzido pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com status de norma constitucional no ordenamento brasileiro, e pela Lei Brasileira de Inclusão (lei 13.146/15), que rechaçam abordagens estritamente biomédicas da deficiência e destacam o papel das barreiras sociais na restrição de direitos.
De acordo com o art. 1º da referida Convenção, “pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”. Tal dispositivo foi reproduzido pelo art. 2º3 da lei 13.146/15.
José Eduardo Silvério Ramos, ao analisar o papel das isenções tributárias como instrumentos de efetivação de políticas públicas voltadas às pessoas com deficiência, sustenta que a construção normativa das isenções, como a do IPI na aquisição de automóveis por pessoas com deficiência, deve respeitar a hierarquia do sistema jurídico, utilizando critérios interpretativos que compatibilizem o texto legal com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade4. Em estudo de caso, demonstra a inadequação dos critérios legais que excluem pessoas com visão monocular ou deficiência auditiva do benefício, evidenciando a existência de antinomias e omissões legislativas que afrontam a Constituição e a jurisprudência consolidada pelos tribunais superiores, que já reconhecem tais condições como deficiência para fins de políticas públicas inclusivas (STF. RMS 26071/DF, 1ª T., rel. min. Carlos Britto, j. 13/11/2007. STJ. AgRg no AREsp 121.972/DF, 2ª T., j. 24/4/2012)5.
Tal como no estudo de José Eduardo, o cerne da presente discussão está em conciliar o dever de contribuição com o direito de acesso pleno às prerrogativas profissionais, mesmo por parte daqueles que, em virtude de enfermidades severas ou deficiências permanentes, desempenham suas funções de modo parcial, residual ou esporádico. Tais situações suscitam a necessidade de leitura sistemática e constitucionalmente orientada das normas institucionais, que considere não apenas a literalidade dos dispositivos administrativos, mas também as diretrizes normativas de proteção integral à pessoa com deficiência.
Afinal, não se pode exigir que o advogado doente renuncie formalmente à sua carreira ou cesse toda atividade intelectual para que tenha direito à isenção. Tal exigência colide frontalmente com o direito ao trabalho e com os benefícios terapêuticos e psicológicos que o exercício profissional, mesmo que limitado, pode trazer a quem enfrenta doenças crônicas. O direito ao trabalho vai além da mera sobrevivência, sendo essencial à democracia e à concretização da cidadania, que, para a maioria das pessoas, só se efetiva por meio do emprego, instrumento fundamental de inserção econômica e social6.
De um lado, a Ordem tem como responsabilidade zelar pela manutenção de seus quadros e serviços, os quais dependem do custeio regular por seus inscritos. De outro, cabe-lhe igualmente assegurar que suas exigências não se tornem obstáculos à permanência ou reinserção de profissionais que enfrentam condições de vulnerabilidade, sobretudo quando estas afetam sua saúde, mobilidade ou capacidade laboral. O equilíbrio entre esses dois vetores – sustentabilidade financeira e inclusão efetiva – impõe à instituição o desafio de atualizar critérios normativos à luz da realidade multifacetada dos seus membros.
A atuação jurídica não raro é possível mesmo em situações de limitação física ou psíquica, ainda que de modo restrito, assistido ou intermitente. Assim, condicionar a isenção à cessação completa da atividade pode colidir com valores constitucionais fundamentais e inviabilizar, em última análise, a permanência digna desses profissionais no exercício da advocacia. Ao mesmo tempo, é legítima a preocupação institucional com a uniformidade das decisões administrativas e com a segurança jurídica dos critérios adotados para a concessão de isenções.
Em meio a essa tensão interpretativa, decisões internas têm sinalizado uma evolução no sentido de reconhecer que a atuação residual não descaracteriza a condição de deficiência quando associada a enfermidades incapacitantes. O Conselho Federal da OAB já vem decidindo que uma vez comprovada a existência de doença grave, total ou significantemente incapacitante para o exercício da profissão – por meio de laudou ou atestado médico – bem como a vulnerabilidade financeira do advogado requerente, deve ser dada interpretação extensiva ao provimento 111/06 do Conselho Federal da OAB, para o deferimento da isenção da anuidade referente ao período em que demonstrada a doença incapacitante (Recurso 49.0000.2018.000935-3/TCA. Julgado em 10/12/2018. DOU, S. 1, 17.12.2018, p. 114; Recurso 49.0000.2019.005029-1/TCA. Julgado em 20/8/2019. DEOAB, a. 1, 187, 24.9.2019, p. 3; Recurso 19.0000.2023.000001-8/TCA. Julgado em 17/3/2023. DEOAB, Ano V, n. 1073, 31.03.2023, p. 3; Recurso 19.0000.2023.000026-1/TCA. Julgado em 20/6/2023. DEOAB, a. 5, 1132, 28.06.2023, p. 3; Recurso 17.0000.2024.020494-0/TCA. Julgado em 18/3/2025. DEOAB, a. 7, n. 1586, 15.04.2025, p. 7). Tais entendimentos evidenciam que a isenção não deve ser vista como privilégio, mas como instrumento de equidade, apto a viabilizar o exercício de uma profissão que, por sua natureza, pode ser, inclusive, terapêutica e promotora de autoestima em contextos de adversidade.
O debate permanece aberto e exige, mais do que ajustes pontuais, uma reflexão institucional sobre os parâmetros de justiça contributiva aplicáveis à advocacia. Afinal, a construção de uma OAB verdadeiramente inclusiva passa pela capacidade de reconhecer e acolher, em suas normas e práticas, a diversidade de trajetórias e de desafios enfrentados por seus membros. O que está em jogo é o compromisso da instituição com uma advocacia acessível a todos, inclusive àqueles que enfrentam barreiras físicas, econômicas e simbólicas no cotidiano do exercício profissional.
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1 OAB estudará política nacional de descontos e isenções de anuidade. OAB Nacional. Brasília, 08 de janeiro de 2025. Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/62844/oab-estudara-politica-nacional-de-descontos-e-isencoes-de-anuidade. Acesso em 23 jul. 2025.
2 Provimento 111/06:
Art. 1º O advogado que atender aos requisitos deste Provimento fica desobrigado, ou terá redução de valores, conforme o caso, no pagamento de contribuições, anuidades, multas e preços de serviços devidos à OAB.
Parágrafo único. Ficam assegurados aos advogados beneficiários deste Provimento os serviços prestados pela OAB, pela Caixa de Assistência dos Advogados e pela Escola Superior de Advocacia, bem como o acesso aos serviços e benefícios postos à disposição e/ou implementados em favor dos inscritos e seus dependentes legais, observadas as normas pertinentes, ressalvados os casos de adesão voluntária com preço complementar.
Art. 2° O benefício definido no art. 1° deste Provimento somente poderá ser concedido ao advogado mediante a constatação de uma das seguintes condições: […]
III – seja portador de necessidades especiais por inexistência de membros superiores ou inferiores, ou absoluta disfunção destes, desde que isso o inabilite para o exercício da profissão.
IV – seja privado de visão em ambos os olhos, desde que isso o inabilite para o exercício da profissão;
V – sofra deficiência mental inabilitadora;
3 Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará:
I – os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;
II – os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;
III – a limitação no desempenho de atividades; e
IV – a restrição de participação.
§ 2º O Poder Executivo criará instrumentos para avaliação da deficiência.
§ 3º O exame médico-pericial componente da avaliação biopsicossocial da deficiência de que trata o § 1º deste artigo poderá ser realizado com o uso de tecnologia de telemedicina ou por análise documental conforme situações e requisitos definidos em regulamento.
4 RAMOS, José Eduardo Silvério. Isenções tributárias e a convenção internacional sobre os direitos as pessoas com deficiência: a isenção de IPI na aquisição de automóveis por pessoa com visão monocular e deficiência auditiva. Revista de Direito Tributário Contemporâneo. vol.30/2021. p. 167-193. Jul-Set/2021. DTR\2021\45226.
5 Ibidem.
6 DELGADO, Maurício Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. Constituição da República e direitos
fundamentais. Dignidade da pessoa humana, justiça social e direito do trabalho. 4. ed. São Paulo: LTr, 2017. p. 104.
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