Projeto de Lei n° 165/2024 que regula dispute boards é aprovado na Câmara Municipal do Rio de Janeiro
Por Munique Mendes e Julia Frony.
Desde a publicação da Lei Federal n° 14.133/2021, que disciplina o novo regime de licitações e contratos administrativos, a questão dos dispute boards – também denominados comitês de resolução de disputas – vêm ganhando maior importância no relevo jurídico nacional, ao expressamente autorizar o uso deste método de resolução de disputas pela Administração Pública.
Os dispute boards são mecanismos de resolução de conflitos criados para garantir maior eficiência em projetos de longo prazo, especialmente no setor da construção civil. Consistem em um painel de especialistas independentes, nomeados no início do projeto e mantidos até sua conclusão, acompanhando todos os estágios da execução do contrato, de forma preventiva e resolutiva.
A atuação dos dispute boards consiste em intervir e/ou assistir eventuais disputas surgidas no decorrer da execução do contrato entre as contratantes, de modo a emitirem recomendações ou decisões, a depender do mandato que lhes foi conferido, de modo ágil, especializado e técnico. Os comitês de resolução de disputas funcionam como uma ferramenta estratégica para evitar conflitos, assegurando a continuidade das obras e reduzindo a probabilidade da transformação dos conflitos em litígios.
Apesar de ser inicialmente concebido para ser empregado em contratos de construção, os dispute boards tem ganhado popularidade em contratos como concessões, parcerias público-privadas e contratos de fornecimento. Ou então, nas palavras da professora Paula Butti Cardoso, a utilização de comitês de resolução de disputa vem crescendo em “contratos de longo prazo ou de execução diferida, características das quais são dotados muitos contratos administrativos”.
Essa popularidade se justifica pela utilidade desse instrumento, cuja “principal finalidade é contribuir para a regular execução do contrato, dentro do tempo previsto, mitigando o risco de que as divergências naturais dos contratantes venham a gerar conflitos que impactem o cumprimento das obrigações contratuais.”
Para atingir tal fim, os contratantes elegem pessoas independentes e especializadas na matéria do contrato celebrado para auxiliá-las na execução deste, remetendo quaisquer decisões acerca do fiel cumprimento do contrato a este comitê. Ou seja, para a composição do comitê não há, necessariamente, que se indicar um advogado, existindo uma flexibilidade para eleger um terceiro independente que possua expertise no assunto em questão, seja este de engenharia civil, marítimo, contábil, químico etc.
Não por outro motivo, a Agência Nacional de Transporte Terrestre – ANTT publicou a Resolução ANTT n° 6.040/2024, com o objetivo de disciplinar, em especial, a instituição de “comitês de prevenção e resolução de disputas” para resolver eventuais controvérsias envolvendo concessionárias.
Tal ferramenta está abarcada dentro da categoria de métodos alternativos de resolução de conflitos. Contudo, ao contrário de outros instrumentos que integram a essa categoria, como a arbitragem e a mediação, que foram disciplinados no âmbito federal em 1996 e em 2015 respectivamente, os dispute boards não possuíam – até agora – qualquer tipo de normativa própria para reger esse procedimento no âmbito federal.
Conforme já identificado por doutrinadores, ainda há determinada resistência na utilização dos dispute boards, oriunda da inexistência de lei federal específica o instrumento:
“o principal obstáculo à aceitação e consequente utilização do instrumento deriva da inexistência de legislação federal específica sobre o CRD, colocando em posição desconfortável tanto o gestor da empresa pública como o da iniciativa privada. Ao gestor de órgão público, porque lhe falta respaldo jurídico perante os órgãos de controle, tornando lógica a sua decisão de priorizar o direito de recorrer à arbitragem, pois esta lhe traz o suporte da já citada Lei n. 9.307/1996. Já o gestor de entidade privada, ante a percepção de que é alta a probabilidade de o gestor público não aceitar uma Recomendação, tende a enxergar o CRD como um custo adicional.”
Registra-se que já existem esforços a nível federal para normatizar os dispute boards, como o projeto de lei n° 9.883/2018 (Deputado Federal Pedro Paulo, PMDB/RJ), que foi apensado ao projeto de lei n° 2.421/2021 (Senador Federal Antonio Anastasia, PSDB/MG). Tais projetos, contudo, tramitam sem pressa há anos perante o poder legislativo, em detrimento da segurança jurídica e da boa condução de comitês de resolução de disputa.
Frente a esse impasse, alguns municípios como São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre, e estados, como o Rio Grande do Sul, supriram a ausência de legislação federal ao sancionar legislação específica regulando este instrumento. Inspirado por essas experiências, o vereador Pedro Duarte (NOVO) apresentou o Projeto de Lei Complementar n° 165/2024 (o “PL”) à Câmara Municipal do Rio de Janeiro, disciplinando a utilização de comitês de prevenção e solução de disputas – dispute boards – em contratos administrativos celebrados pela administração pública direta e indireta do município.
Em 3 de junho de 2025, o PL foi unanimemente aprovado em segunda discussão com três emendas. No momento, aguarda-se a redação final do PL, contemplando as emendas discutidas, para que seja encaminhado para sanção ou veto da prefeitura carioca.
Após sancionada, tal lei será aplicável a todos os contratos celebrados pela Administração Pública Direta e Indireta do Município do Rio de Janeiro que utilizem comitês de prevenção e solução de disputas para prevenir e decidir conflitos relacionados a direitos patrimoniais disponíveis.
Aprendendo de experiências pretéritas de outros municípios, adotou-se na lei a possibilidade do dispute board possuir natureza (i) recomendativa, na qual são elaboradas sugestões não vinculantes para superar o impasse entre os contratantes, (ii) adjudicativa, na qual são proferidas decisões vinculantes para superar o conflito entre as contratantes, ou (iii) híbrida, na qual são cumuladas as funções das outras duas modalidades, a depender de qual será mais adequada para o caso em contesto.
Como não poderia deixar de ser, o texto do PL determina que a natureza do comitê de resolução de disputas dependerá dos poderes outorgados pelas contratantes no contrato administrativo celebrado. Ou seja, a vinculação das contratantes às determinações do dispute board dependerá de sua própria vontade pretérita de se vincular (ou não) às decisões exaradas por esse órgão.
Ainda assim, é certo que o PL antevê, desde logo, alternativas possíveis para a parte insatisfeita lidar com recomendação ou decisão proferida pelo comitê. Em hipótese de comitê de recomendação, a parte insatisfeita terá prazo de vinte dias úteis do recebimento da recomendação pelo comitê para notificar a outra parte e o próprio comitê de sua discordância, sob pena de conferir poder vinculante à recomendação.
Por outro lado, em hipótese de comitê de adjudicação, a parte insatisfeita terá igualmente prazo de vinte dias úteis do recebimento da decisão para notificar a outra parte e o próprio comitê de sua discordância, como condição prévia para a instauração de ação judicial ou arbitral, a depender do mecanismo de resolução de controvérsias previsto no contrato administrativo.
Nesse caso, contudo, é importante esclarecer que a doutrina consagrou a máxima “pay now, argue latter approach”, ou seja, a obrigatoriedade das decisões proferidas por comitê de resolução de disputas não tem sua eficácia suspensa mediante a mera apresentação de ação judicial ou arbitral, acolhida sem efeito suspensivo.
No que tange aos membros do comitê, a redação do PL prevê que o comitê será composto por três pessoas, capazes e de confiança das partes, que deverão proceder com imparcialidade, independência, competência e diligência no desempenho de suas funções. Ademais, o texto final aprovado na Câmara dispõe que, assim como no caso dos árbitros, aplicam-se aos membros do comitê também as situações que caracterizam os casos de suspeição e impedimento dos juízes, conforme previstos no Código de Processo Civil.
Naturalmente, com o sancionamento dessa lei, será mais profícuo o debate jurisprudencial acerca deste tema, bem como serão evidenciadas novas tendências na utilização dessa ferramenta pelo mercado. Ainda assim, aprovações de lei como a presente demonstram-se como um grande “sinal verde” para investimentos na cidade do Rio de Janeiro, que contariam com o respaldo de uma ferramenta inovadora para garantir a eficiência e o equilíbrio de contratos de longo prazo ou de execução diferida, sejam esses pactuados com a Administração Pública ou entre entes privados – que façam uso desses parâmetros para balizar suas próprias avenças.