O Governo Federal publicou, em 30 de abril de 2023, a Medida Provisória nº 1.171 (“MP”), que dispõe sobre a tributação da renda auferida por pessoas físicas residentes no País em aplicações financeiras, entidades controladas e trusts no exterior (além de atualizar a tabela mensal do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física, situação que não será objeto de análise).

 

A MP, em relação ao assunto ora tratado, pode ser dividida nos seguintes tópicos:

 

(1)             tributação de rendimentos de aplicações financeiras no exterior percebidos por pessoas físicas;

(2)             entidades controladas no exterior;

(3)             trusts no exterior;

(4)             possibilidade de reavaliação de bens e direitos no exterior; e

(5)             revogação de dispositivos relacionados a ganho de capital.

 

A MP entrou em vigor em 1º de maio de 2023, mas os tópicos relacionados aos itens (1) a (3) acima só terão eficácia a partir de 1º de janeiro de 2024, de modo que, na prática, a MP precisará ser convertida em lei, após trâmite no Congresso Nacional, para que tais efeitos se verifiquem.

 

Por outro lado, em relação aos tópicos (4) e (5), a MP passou a gerar efeitos a partir de sua entrada em vigor, merecendo atenção imediata do contribuinte.

 

1. Tributação de rendimentos de aplicações financeiras no exterior percebidos por pessoas físicas

Inicialmente, a MP prevê que, a partir do ano-calendário de 2024, os rendimentos (conforme definido pela MP) provenientes das aplicações financeiras no exterior (conforme definido pela MP) percebidos por pessoas físicas se submeterão à incidência do IRPF no ajuste anual, pelas seguintes alíquotas:

 

Rendimentos anuais

Alíquota aplicável

Parcela até R$ 6.000,00

0%

Parcela compreendida entre R$ 6.000,00 e R$ 50.000,00

15%

Parcela que exceder R$ 50.000,00

22,5%

 

Por outro lado, os ganhos de capital (conforme definido pela MP) continuariam sendo tributados da mesma forma, permanecendo sujeitos às regras de tributação previstas no art. 21 da Lei nº 8.981/95.

 

Os conceitos de aplicações financeiras, rendimentos e ganhos de capital trazidos pela MP são os seguintes:

 

Aplicações financeiras

(art. 3º, §1º, inciso I)

exemplificativamente, depósitos bancários, certificados de depósitos, cotas de fundos de investimento, com exceção daqueles tratados como entidades controladas no exterior, instrumentos financeiros, apólices de seguro, certificados de investimento ou operações de capitalização, depósitos em cartões de crédito, fundos de aposentadoria ou pensão, títulos de renda fixa e de renda variável, derivativos e participações societárias, com exceção daquelas tratadas como entidades controladas no exterior

Rendimentos

(art. 3º, §1º, inciso II)

“remuneração produzida pelas aplicações financeiras, incluindo, exemplificativamente, variação cambial da moeda estrangeira frente à moeda nacional, juros, prêmios, comissões, ágio, deságio, participações nos lucros, dividendos e ganhos em negociações no mercado secundário, incluindo ganhos na venda de ações das entidades não controladas em bolsa de valores no exterior.”

Ganhos de capital

“ganhos de capital percebidos pela pessoa física residente no País na alienação, na baixa ou na liquidação de bens e direitos localizados no exterior que não constituam aplicações financeiras

 

Uma crítica a ser feita ao texto é que o conceito de aplicações financeiras, do qual decorrem os demais, não é propriamente definido pela MP, mas sim “exemplificado”, abrindo margem para se interpretar quais ativos estariam abrangidos no conceito, e quais não estariam – cenário propício para surgirem novas discussões entre o Fisco e o contribuinte.

 

A título exemplificativo, é possível se considerar que os criptoativos são aplicações financeiras, de modo que eventuais ganhos provenientes de sua alienação estariam abarcados no conceito de rendimentos, ou tais ganhos seriam ganhos de capital? Não é possível se inferir essa resposta a partir da própria MP.

 

Espera-se que essa e outras questões sejam resolvidas durante a discussão da MP pelo Congresso Nacional.

 

Comentários em relação à regra até então vigente:

 

No regramento até então vigente, os rendimentos (conceito definido pela MP), a depender de sua natureza, poderiam ser tributados como “demais rendimentos”, sujeitos à tributação sob forma de recolhimento mensal obrigatório (carnê-leão) – alíquota máxima de 27,5% –, ou como ganhos sujeitos à tributação na forma de “ganhos de capital” – alíquota máxima de 22,5%.

 

Em outras palavras, a MP pretende facilitar a declaração de tais rendimentos para o contribuinte, que não precisará declarar e recolher mensalmente eventuais valores que sejam devidos, podendo consolidar o resultado em sua Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda (DAA).

 

Além disso, situações usualmente sujeitas à tributação como “demais rendimentos”, como a distribuição de lucros e dividendos, poderão se beneficiar de uma alíquota menor, de, no máximo, 22,5%, em relação à alíquota de até 27,5% até então aplicável.

 

Por outro lado, não se pode perder de vista que a alíquota de 22,5% para rendimentos superiores a R$ 50.000,00 por ano pode trazer impacto relevante para situações que até então estivessem sujeitas à apuração de ganho de capital, já que as alíquotas aplicáveis nessa hipótese são significativamente menores – a título exemplificativo, há isenção para ganhos de até R$ 35.000,00 por mês (a depender da natureza da operação), e a alíquota de 22,5% só seria aplicável em relação à parcela do ganho de capital que excedesse R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais).

 

2. Entidades controladas no exterior

Em relação às entidades controladas no exterior (que não são consideradas ativos financeiros pela MP), no que talvez seja o ponto mais complexo da MP, o diploma alterou significativamente a forma de sua tributação pela pessoa física, definindo hipóteses em que o lucro apurado por tais entidades seja tributado anualmente, independentemente de sua disponibilização / distribuição às pessoas físicas.

 

Conceito – Entidade Controlada

 

A MP criou o conceito de entidade controlada, aplicável a qualquer tipo de sociedade ou entidade, personificada ou não (incluindo fundos de investimento e fundações), e configurada quando a pessoa física, de forma direta ou indireta, isolada ou conjuntamente com pessoas vinculadas, (a) detém direitos que assegurem a preponderância nas deliberações sociais ou eleição / destituição da maioria dos administradores; ou (b) possui mais de 50% do capital social (ou equivalente); ou (c) possui mais de 50% dos direitos à percepção de lucros ou recebimento de ativos na hipótese de liquidação.

 

Por sua vez, o conceito de pessoas vinculadas corresponde a (x) cônjuges ou familiares, até o terceiro grau; (w) pessoa jurídica do qual o cônjuge ou familiares (pessoas listadas no item anterior) sejam diretores ou administradores; (y) sociedades da qual a referida pessoa física seja sócia, titular ou quotista, com mais de 10% de participação social; (z) sócios de sociedades da qual a referida pessoa física seja sócia, titular ou quotista, com mais de 10% de participação.

 

Tributação das entidades controladas

 

A tributação das entidades controladas varia conforme as seguintes situações:

 

(i) Tributação anual dos lucros apurados pela entidade controlada a partir de 2024 independentemente de qualquer deliberação acerca de sua distribuição, na hipótese de a entidade controlada (i.1) estar localizada em país ou dependência com tributação favorecida ou ser beneficiária de regime fiscal privilegiado; ou (i.2) apurar renda ativa própria inferior a 80% (oitenta por cento) da renda total;

 

Por renda ativa própria, entende-se a receita obtida pela pessoa jurídica em decorrência de exploração de atividade econômica própria, excluídas as receitas de: a) royalties; b) juros; c) dividendos; d) participações societárias; e) aluguéis; f) ganhos de capital, exceto na alienação de participações societárias ou ativos de caráter permanente adquiridos há mais de dois anos; g) aplicações financeiras; e h) intermediação financeira.

 

Por renda total, entende-se o somatório de todas as receitas, inclusive as não-operacionais.

 

Ou seja, a MP busca tributar as entidades controladas cuja receita decorrente de “renda passiva própria” seja superior a 20% da renda total.

 

(ii) Tributação, quando da efetiva disponibilização para a pessoa física, dos lucros apurados até 31 de dezembro de 2023 por qualquer entidade controlada, e dos lucros apurados a partir de 2024 pelas entidades controladas não abrangidas pelo item (i) acima.

 

Tributação anual – alterações no custo de aquisição do ativo

 

Os lucros de entidades controladas tributados anualmente serão acrescidos ao custo de aquisição do respectivo ativo na DAA da pessoa física e, quando distribuídos, reduzirão o respectivo custo de aquisição, sem nova tributação.

 

Deduções autorizadas

 

As entidades controladas sujeitas à tributação anual de seus lucros poderão deduzir, os prejuízos que sejam apurados após a produção de efeitos da MP (ou seja, a partir de 2024) e a parcela do lucro que se referir a pessoas jurídicas investidas domiciliadas no Brasil.

Por sua vez, a pessoa física poderá deduzir, do imposto devido por si, os tributos que eventualmente tenham sido pagos pelas entidades controladas no exterior em relação ao lucro tributado.

 

Comentários em relação à regra até então vigente:

 

No regramento até então vigente, há a possibilidade de diferimento dos lucros apurados pelas chamadas entidades controladas (conceito definido pela MP), que só são tributados quando da efetiva disponibilização à pessoa física. A MP inova ao definir que, em relação às entidades controladas que estejam em “paraísos fiscais” ou que tenham renda passiva superior a 20%, tais lucros devam ser tributados anualmente, independentemente de distribuição.

 

3. Trusts no exterior

Em relação aos trusts, a MP tratou-os como “transparentes” para fins fiscais, sujeitando a tributação dos ativos detidos pelo trust ao seu instituidor, até que seja distribuído ao seu beneficiário, e a partir de então ao próprio beneficiário.

 

Em outras palavras, caberá ao respectivo sujeito passivo (instituidor ou beneficiário, conforme aplicável), declarar em seus “bens e direitos” os ativos detidos diretamente pelo trust, como se seus fossem, e realizar a tributação dos ganhos e rendimentos aferidos a partir de tais ativos, na forma prevista pela MP.

 

Comentários em relação à regra até então vigente:

 

No regramento até então vigente, não há disposição específica quanto à declaração do trust e/ou de seus ativos na DAA. Há, contudo, posicionamento da Receita Federal do Brasil pela classificação dos rendimentos recebidos de trust como “demais rendimentos”, sujeitos à tributação sob forma de recolhimento mensal obrigatório (carnê-leão). Nesse sentido, é positiva a inovação trazida pela MP, que esclarece, dentro outros, a sujeição passiva pelos rendimentos e ganhos aferidos pelo trust, além de indicar como tais ativos devem ser declarados pelas pessoas físicas.

 


4. Possibilidade de reavaliação de ativos no exterior

 Em relação aos tópicos com vigência imediata, merece bastante destaque a possibilidade prevista na MP de as pessoas físicas atualizarem o valor de seus ativos no exterior aos respectivos valores de mercado verificados em 31 de dezembro de 2022, mediante o pagamento de IRPF calculado à alíquota de 10% em relação à diferença entre o novo valor e o respectivo custo de aquisição, diferença essa considerada acréscimo patrimonial.

 

Essa possibilidade se aplica a aplicações financeiras (conforme definido na MP), bens imóveis ou ativos que representem direitos sobre bens imóveis, veículos, aeronaves, embarcações e demais bens móveis sujeitos a registro em geral, além de entidades controladas. Além disso, é possível que a opção seja feita individualmente em relação a cada bem, sendo permitido atualizar somente parte deles.

 

A Receita Federal do Brasil ainda regulará a forma de exercício e o prazo dessa possibilidade. Para exercício da opção, contudo, é necessário que o ativo esteja declarado na DAA relativa ao ano-calendário de 2022, transmitida até 31.05.2023. Ainda que a MP possa ser alterada pelo Congresso Nacional no curso de tramitação para conversão em lei, não há garantia de que tal prazo seja reaberto e/ou prorrogado.

 

Em relação, especificamente, às entidades controladas, a pessoa física que tiver optado pela atualização de seus valores ao valor de mercado verificado em 31 de dezembro de 2022 poderá, ainda, optar por atualizar ao valor de mercado verificado em 31 de dezembro de 2023, mediante o pagamento de IRPF calculado à alíquota de 10%, sobre essa nova diferença.

 

5. Revogação de dispositivos relacionados a ganho de capital

Por fim, a MP revogou dois importantes dispositivos relativos a ganhos de capital:

 

(i) isenção de ganho de capital para ativos no exterior adquiridos na condição de não-residente; e

(ii) na hipótese de alienação de ativos originalmente adquiridos em moeda estrangeira, o ganho de capital era apurado com base na diferença, na moeda estrangeira, entre os valores de aquisição e de alienação – ou seja, o dispositivo neutralizava a diferença de cotação da moeda estrangeira entre a data de aquisição e a data de alienação.

 

Se essas revogações não forem alteradas pelo Congresso Nacional, certamente haverá fundamentos para os contribuintes as discutirem em relação aos ativos adquiridos anteriormente à vigência da MP, em 01 de maio de 2023.

 

Considerações finais

A MP apresentada pelo Governo Federal teve como objetivo reduzir distorção apontada pelo Ministério da Fazenda, existente entre os investimentos realizados por pessoas físicas no exterior por meio de entidades controladas, que podem diferir a tributação de seus rendimentos, em comparação com os investimentos realizados diretamente por pessoas físicas, no Brasil e no exterior.

 

Em que pese a intenção louvável da MP, faz-se necessário o aprofundamento da discussão em relação a seus dispositivos, já que, além de algumas imprecisões técnicas, a MP deixa de regular situações subjacentes que culminam com a mesma disparidade de tratamento (por ex., a tributação definida para os rendimentos aferidos diretamente pelas pessoas físicas não prevê a dedução de eventuais prejuízos, ao passo em que as entidades controladas só tributam o ganho líquido).

 

Além disso, a MP aumenta a carga tributária incidente sobre certas operações no exterior, substituindo uma isenção mensal de até R$ 35.000,00 por uma isenção anual de R$ 6.000,00 (ou seja, reduzindo a base de cálculo sujeita à isenção em até 98%).

 

Por fim, mas não menos relevante, é necessário limitar expressamente os efeitos da MP à esfera tributária, ou tratar com mais detalhes de suas intersecções com outras áreas, sob pena de exsurgirem, a partir das previsões, novas discussões legais (por ex., comunicabilidade dos rendimentos apurados por trusts).

 

Esperamos que a MP seja aprimorada pelo Congresso Nacional, para que, a despeito da forma utilizada (pela relevância, a matéria deveria ter sido objeto de discussão ampla pelo Poder Legislativo, e não “definida” pelo Poder Executivo), possamos ter uma legislação justa e eficiente em relação ao assunto, evitando-se uma emenda pior do que o soneto.


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