Luis
Felipe Salomão Filho
Sócio do escritório Salomão, Kaiuca, Abrahão, Raposo e Cotta Advogados e engenheiro naval
Livia
Sanches Sancio
Sócia
do escritório Salomão, Kaiuca, Abrahão, Raposo e Cotta Advogados e especialista
em Direito Marítimo
Introdução
Em
um país de extensa costa e com a economia intimamente relacionada com o mar, o
Poder Judiciário brasileiro se vê diante do desafio de ser cada vez mais técnico
e especializado no âmbito do direito marítimo. À medida que as questões legais
relacionadas ao mar e à navegação se tornam intricadas e multifacetadas, a
necessidade de juízes, advogados e profissionais do direito possuírem
conhecimentos sólidos e específicos torna-se imperativa. A aplicação justa e
equitativa do direito marítimo requer uma compreensão profunda não apenas das
leis marítimas em si – que, aliás, são inúmeras e raramente ensinadas nas
faculdades – , mas também das complexidades técnicas e científicas que
frequentemente estão envolvidas em casos judiciais relacionados ao mar.
É
neste universo que o presente artigo busca analisar a forma como a
especialização em direito marítimo vem sendo tratada pelo Poder Judiciário,
demonstrando exemplos de criação de Varas Especializadas e, ainda, tratando do
Tribunal Marítimo enquanto órgão auxiliar do Poder Judiciário.
Tribunal
Marítimo enquanto órgão auxiliar do Poder Judiciário
Não
há como se falar em direito marítimo no Brasil sem tratarmos do Tribunal
Marítimo. Em que pese o nome, o Tribunal Marítimo não é parte do Poder
Judiciário, mas sim um órgão autônomo vinculado à União e que pode auxiliar o
Poder Judiciário, como veremos à frente.
Na
década de 1930, o Brasil enfrentava um aumento na quantidade de acidentes de
navegação em sua costa, ameaçando tanto a segurança nas águas brasileiras
quanto a soberania do país, eis que o Brasil ficava sujeito a decisões dos
tribunais marítimos estrangeiros na investigação e análise de acidentes.
O
acidente que é considerado o estopim para a criação do Tribunal Marítimo ocorreu
no dia 24 de outubro de 1930, quando o comandante do navio alemão
"BADEN", em escala no Rio de Janeiro, optou por prosseguir com a
viagem para o sul mesmo sem a devida autorização para deixar a Baía da
Guanabara. Ignorando os avisos emitidos pela Fortaleza de Santa Cruz, o
comandante continuou a navegação em direção à saída da barra, o que levou o Forte
de Vigia, localizado no Leme, a abrir fogo contra o navio alemão, levando a 22
fatalidades e muitos outros feridos[1].
O
incidente se tornou um ponto de tensão internacional, tendo sido investigado e
julgado pelo Tribunal Marítimo da Alemanha. O Tribunal alemão concluiu que o
comandante do navio "BADEN" agiu de maneira precipitada e também
apontou negligência por parte das fortalezas brasileiras que bombardearam o
navio.
O
incidente com o Baden evidenciou a vulnerabilidade do Brasil em questões
marítimas e levou a questionamentos quanto à soberania nacional e sujeição de decisões
de órgãos estrangeiros. Surgiu, assim, a necessidade de criação de um órgão
técnico especializado capaz de investigar e avaliar as causas e circunstâncias
dos acidentes envolvendo embarcações nacionais e estrangeiras em águas
brasileiras.
Assim,
em 21 de dezembro de 1931, Getúlio Vargas editou o Decreto 20.829/1931,
publicado na véspera de Natal daquele ano, criando a Diretoria da Marinha
Mercante, que ficaria subordinada ao Ministério da Marinha. O referido decreto
dispôs, em seu artigo 5º, a criação de Tribunais Marítimos Administrativos,
cuja organização e atribuições seriam posteriormente determinados por regulamento
da Diretoria da Marinha Mercante. Posteriormente, em julho de 1933, o Decreto
de nº 22.900/1933, desvinculou o Tribunal da Diretoria da Marinha Mercante,
colocando-o diretamente sob a autoridade do Ministro da Marinha.
Um
ano depois, em 5 de julho de 1934, foi editado o Decreto nº 24.585, aprovando o
Regulamento do Tribunal Marítimo Administrativo – data essa que é considerada o
aniversário do Tribunal. O regulamento confirmou a existência de apenas um
Tribunal Marítimo, com sede na então Capital Federal, Rio de Janeiro, e abandonando
a ideia de divisão do território nacional em circunscrições marítimas.
Surge,
posteriormente, a lei nº 2.180/1954 - Lei Orgânica do Tribunal Marítimo, ainda
hoje em vigor. O diploma deixa claro, em seu artigo primeiro, que o Tribunal
Marítimo é um órgão autônomo, com jurisdição em todo o território nacional,
auxiliar do Poder Judiciário e vinculado ao Comando da Marinha. Sua principal
função é de julgar os acidentes e fatos da navegação marítima, fluvial e
lacustre e as questões relacionadas com tal atividade. Não se trata, aqui, de
um julgamento como feito pelo Poder Judiciário, mas uma esfera distinta, cujo objetivo
principal é determinar as causas do acidente, indicar os responsáveis e propor
medidas preventivas e de segurança da navegação.
Há
um procedimento específico a ser seguido para o julgamento dos acidentes ou
fatos da navegação, definido pela Lei 2.180/1954, garantindo-se contraditório e
ampla defesa, e com algumas etapas que lembram, em parte, o procedimento do
Judiciário, como a produção de evidências e possibilidade de apresentação de
recursos (registre-se: com prazos e requisitos bastante diferentes daqueles do
processo civil), podendo culminar em algumas penalidades, dentre elas suspensão
de pessoal marítimo, suspensão de tráfego da embarcação, cancelamento do
registro de armados, multa, dentre outros.
A
composição do Tribunal Marítimo é, também, bastante particular, incluindo um
Presidente, que deve ser um Oficial-General do Corpo da Armada da ativa ou na
inatividade, dois Juízes Militares (um do Corpo da Armada e outro do Corpo de
Engenheiros e Técnicos Navais subespecializado em máquinas ou casco) e quatro
Juízes Civis. Os Juízes Civis incluem dois bacharéis em Direito (um
especializado em Direito Marítimo e outro em Direito Internacional Público), um
especialista em armação de navios e navegação comercial e um Capitão de Longo
Curso da Marinha Mercante. Essa diversidade busca garantir decisões técnicas e
completas.
O
Poder Judiciário e o Tribunal Marítimo, portanto, não se confundem. São esferas
diversas e que co-existem. Uma colisão entre duas embarcações, por exemplo,
será objeto de processo no Tribunal Marítimo para aferir as causas da colisão e
indicar os responsáveis, enquanto, ao mesmo tempo, é possível que os envolvidos
também discutam a responsabilidade civil no âmbito do Judiciário.
Destaca-se
que o entendimento consolidado hoje é de que as decisões do Tribunal Marítimo
não fazem coisa julgada e são de natureza administrativa[2]. No entanto, em razão de
sua especialidade, a decisão do Tribunal Marítimo serve com forte evidência em
processos judiciais, especialmente no que tange a aspectos técnicos[3].
Aliás,
é interessante notar que o art. 313 do CPC/2015, que trata das hipóteses de
suspensão do processo judicial, lista em um dos incisos a suspensão quando se
discutir em juízo questão decorrente de acidentes e fatos
da navegação de competência do Tribunal Marítimo.
Portanto,
além de ter jurisdição em todo o território nacional, o Tribunal Marítimo é um
órgão autônomo auxiliar do Poder Judiciário e, embora não seja parte do sistema
judicial tradicional, possui jurisdição para investigar e proferir decisões que
abordam definição de sua natureza, identificação de causas e circunstâncias,
determinação de responsabilidades e aplicação de penalidades de acordo com a
legislação vigente.
A
Especialização do Direito Marítimo nos Tribunais Brasileiros
Já
no Judiciário, a competência para processar e julgar demandas relacionadas ao
direito marítimo é determinada, em regra, pelo Tribunal de Justiça de cada
Estado, considerando-se a previsão do art. 125, §1º da Constituição Federal que
determina que a competência dos tribunais é definida pela Constituição Estadual
e a lei de organização judiciaria é de iniciativa do Tribunal de Justiça de
cada Estado.
Sendo
assim, o que se verifica é que, em que pese a extensa costa brasileira, são
poucos os Estados que possuem varas especializadas na matéria, tendo crescido o
debate no meio marítimo quanto à necessidade e viabilidade de criação das
mesmas.
Nesse
sentido, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, grande polo da
indústria de óleo e gás, foi pioneiro ao destacar as demandas de direito
marítimo para uma competência funcional. Isso ocorreu por meio da edição, em
seu órgão especial, da Resolução 19 de 2001, que alterou o Código de
Organização e Divisão Judiciária do Estado do Rio de Janeiro – CODJERJ para expandir
as atribuições das então “Varas de Falência e Concordatas da Comarca da Capital”
para abranger uma variedade de matérias relacionadas ao direito comercial, onde
se insere o direito marítimo, vindo depois a serem denominadas somente “Varas Empresariais”
com a Resolução 16 de 2002.
Atualmente
a competência funcional das Varas Empresariais da Comarca da Capital do Estado do
Rio de Janeiro é regulada pela Lei nº 6.956 de 2015, que dispõe sobre a
Organização e Divisão Judiciária (LODJ) dispondo expressamente no seu artigo
50, inciso I, alínea ‘h’ a competência das Varas Empresariais para processar e
julgar demandas relacionadas ao direito marítimo:
Art. 50 Compete
aos Juízes de Direito em matéria empresarial:
I - processar e
julgar: (...)
h) ações relativas
a direito marítimo, especialmente as de: 1. indenização por falta, extravio ou
avarias, inclusive às relativas a sub2. apreensão de embarcações; 3.
ratificações de protesto formado a bordo; 4. vistoria de cargas; 5. cobrança de
frete e sobrestadia; 6. operações de salvamento, reboque, praticagem, remoção
de destroços, avaria grossa; 7. lide relacionada a comissões, corretagens ou
taxas de agenciamento de embarcação;
Desafiado inúmeras vezes, o Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro consolidou pacífica jurisprudência que bem reconhece
o caráter exemplificativo das hipóteses indicadas na alínea ‘h’ acima, até
mesmo pela utilização do vernáculo “especialmente” na referida alínea antes de
adentrar-se a algumas das hipóteses de ações relativas ao direito marítimo. Em
entendimento uníssono, o Judiciário Fluminense tem acertadamente feito valer a
competência do juízo empresarial em demandas que revolvam sobre sanções
contratuais lastreadas em contratos que envolvam o direito marítimo e conceitos
intimamente ligados à matéria, destacando-se a competência das Vara Empresariais[4].
Ao
concentrar as demandas relacionadas ao direito marítimo nas sete Varas
Empresariais, o Judiciário carioca tem cada vez mais se especializado na
matéria, conferindo maior segurança jurídica ao setor ao possibilitar que os
juízes possam se aprofundar nos assuntos em discussão, trazendo, ainda,
uniformidade e celeridade.
Até
o presente, as demandas em matéria empresarial, no que se inclui o direito
marítimo, são julgadas pelas Câmaras de Direito Privado, estando em discussão a
possibilidade de criação de Câmaras de Direito Empresarial.
A
especialização de magistrados e criação de Varas especializadas para disputas
relacionadas ao direito marítimo também vem sendo discutida em outros Estados
com a adoção de diferentes práticas. O Tribunal de Justiça do Pernambuco, por
exemplo, possui uma Vara especializada na matéria em Ipojuca, localidade do
Porto de Suape.
Neste
universo, chama-se atenção para a proposta feita pelo Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo para criação de um Núcleo Especializado de Justiça 4.0 em
matéria marítima, baseado na iniciativa do Conselho Nacional de Justiça de
criação dos chamados “Núcleos de Justiça 4.0”, instituída pelas Resoluções CNJ nº
385/2021 e nº 398/2021. As Resoluções trazem em seu artigo primeiro a
possibilidade de tribunais instituírem os referidos núcleos, especializando-os
em uma determinada matéria e com competência sobre sua área territorial.
Analisando-se
as resoluções, percebe-se que o objetivo principal é utilizar-se da
desburocratização e informatização do processo judicial para melhorar a gestão
do acervo processual e aumentar a celeridade. Nesses Núcleos a serem criados,
os procedimentos são conduzidos de maneira eletrônica, fazendo uso extensivo de
videoconferências e outras ferramentas tecnológicas para auxiliar nos diversos
atos processuais.
A
referida resolução estabelece que cada Tribunal de Justiça definirá as
especificidades dos núcleos, como por exemplo as classes, os assuntos e as
fases dos processos que serão a ele encaminhados. Cada núcleo contará com um
juiz que o coordenará e com, no mínimo, dois outros juízes.
Com
base nas referidas resoluções, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
estuda a criação de um Núcleo Especializado de Justiça 4.0, com competência
para processar e julgar demandas relacionadas ao Direito Marítimo, Portuário e
Aduaneiro. Em maio de 2023, no processo 2022/00132753, o Presidente do Tribunal
enviou proposta à Corregedoria Geral da Justiça com sugestão de criação do
Núcleo, a operar de forma 100% virtual e com três juízes em atuação cumulativa
na unidade de lotação original.
Conclusão
Através
desta análise, tecemos um breve retrospecto da forma como o direito marítimo é
trabalhado no sistema judiciário brasileiro sob o aspecto organizacional.
Verificamos que o Tribunal Marítimo desempenha um papel fundamental na promoção
da segurança da navegação e da soberania nacional, atuando como um órgão
auxiliar ao Poder Judiciário e importante fonte de evidências técnicas para
processos judiciais.
O
Poder Judiciário, por sua vez, é cada vez mais desafiado a oferecer respostas
para o setor, o que vem aumentando a discussão quanto à necessidade de implementação
da especialização do direito marítimo em suas respectivas estruturas internas,
aliando-se à Recomendação 56 de 2019 do CNJ para especialização dos Tribunais
em matérias de direito empresarial.
Como
vantagens da especialização, são verificadas, dentre outras, a melhoria na
qualidade das decisões que se tornam mais profundas na matéria e a maior
eficiência dos procedimentos. Em contrapartida, há quem demonstre preocupação
com o possível prejuízo à diversidade de posições em caso de criação de vara
especializada única em uma Comarca, isto é, ter-se-ia a certeza da distribuição
do processo para uma única vara, reduzindo-se a possibilidade de posições
divergentes. É importante, portanto, avaliar cada caso para certificar-se das
vantagens e desvantagens.
De modo geral, a especialização dos magistrados mostra-se bastante positiva, em especial para uma matéria tão complexa e extensa como o Direito Marítimo, cuja legislação inclui o Código Comercial de 1850, tratados e convenções internacionais, o Código Civil e inúmeras leis esparsas. Nesse ponto, entendemos que é válida não apenas a criação de Varas ou Câmaras especializadas, mas também a iniciativa do Judiciário de oferecer especialização aos magistrados na matéria, como é o caso
[1]LIMA
FILHO, Wilson Pereira. Por que um Tribunal Marítimo para o Brasil? Migalhas. Disponível
em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-maritimas/352404/por-que-um-tribunal-maritimo-para-o-brasil-reflexoes;
TRIBUNAL MARÍTIMO. Disponível em https://www.marinha.mil.br/tm/?q=historico
[2] OCTAVIANO, Eliane. Curso de
Direito Marítimo. Manole, 3ª Edição.
[3] Nesse sentido, destaca-se
precedente exemplificativo: “Agravo – Ação regressiva
de cobrança – Seguradora que pretende ser ressarcida em razão de pagamento de
indenização securitária, decorrente de sinistro envolvendo embarcação náutica,
bem objeto do contrato de seguro – Procedimento administrativo em trâmite
perante o Tribunal Marítimo – Cabimento da suspensão do feito, com fundamento
no artigo 265, inciso IV, 'b', do Código de Processo Civil, com a finalidade de
obtenção de provas e maiores elementos para a definição da lide. Com
efeito, embora a decisão definitiva do Tribunal Marítimo, não seja pressuposto
de procedibilidade, trata-se de elemento de prova que poderá auxiliar o Poder
Judiciário na análise e julgamento a demanda. – O princípio do contraditório não será violado, tendo em
conta a possibilidade de reexame, pelo Poder Judiciário, das provas produzidas
e decisões proferidas no Tribunal Marítimo – Recurso provido.”
(TJSP;
Agravo de Instrumento 2161269-92.2015.8.26.0000; Relator (a): Neto Barbosa
Ferreira; Órgão Julgador: 29ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível
- 7ª Vara Cível; Data do Julgamento: 16/09/2015; Data de Registro:
17/09/2015)
[4] Exemplifica-se: “Alega
que a presente demanda não versa sobre direito marítimo, e sim a discussão de
eventual descumprimento de cláusulas no contrato firmado entre as partes, e
especificamente quanto à multa cobrada pela ré/apelante. Entretanto, não lhe
assiste razão. O objeto da demanda é o contrato de prestação de serviço de
operação de embarcação firmado entre as partes, e o fato de a discussão versar
sobre regularidade de suas cláusulas não o desnatura como instituto de Direito
Marítimo, cuja competência recai sobre o Juízo Empresarial, nos termos do art.
50, inciso I, alínea h, da LODJ. O art. 50 da LODJ diz que compete aos Juízes
de Direito, em matéria empresarial, em sua alínea “h”, as ações relativas a
direito marítimo, utilizando o termo especialmente, com o objetivo de não
tornar taxativo o rol lá previsto, e sim exemplificativo. (...) Assim, não
pairando dúvidas sobre o fato de que o contrato objeto da presente demanda
pertence ao ramo do direito marítimo, o juízo competente para o seu julgamento
é o empresarial, como restou consignado na sentença apelada.” (0050393-23.2020.8.19.0001
- APELAÇÃO. Des(a). MÔNICA DE FARIA SARDAS - Julgamento: 02/08/2022 - VIGÉSIMA
SEGUNDA CÂMARA CÍVEL – ATUAL DÉCIMA TERCEIRA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO)