Foro de eleição e a modificação do art. 63 do CPC/2015: impactos em contratos internacionais e em contratos já firmados
Livia Sanches Sancio
Sócia do Salomão Advogados. LLM em Direito Marítimo pela Universidade de Southampton (Inglaterra). Especializada em Direito Marítimo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Especializada em Direito do Petróleo pelo IBP. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV/ES). Membro da Comissão de Direito Marítimo e Portuário do Conselho Federal da OAB.
Alice Moreira Studart da Fonseca
Advogada sênior do Salomão Advogados. LLM em Civil e Processo Civil pela Fundação Getulio Vargas (FGV). Pós-graduada em Responsabilidade Civil e Direito do Consumidor pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Especializada em Direito Marítimo pela Fundação Getulio Vargas (FGV). Graduada em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UESA) e em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Diretora Regional Rio de Janeiro da Wista – Women’s International Shipping and Trading Association
1. INTRODUÇÃO
O foro de eleição não é um instituto novo. A possibilidade de escolha pelas partes do local onde eventuais disputas serão decididas já era prevista desde as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas (que vigoraram no Brasil), assim como no Regulamento n° 737/1850, que sistematizou o processo civil no período imperial.
Apesar de o Código de Processo Civil de 1939 não trazer previsão expressa sobre a possibilidade de fixação de competência, ele era autorizado pelo artigo 42 do Código Civil de 1916 . Já o diploma que o sucedeu, o Código de Processo Civil de 1973, em seu artigo 111 do CPC/1973 autorizava que as partes elegessem “foro onde serão propostas as ações oriundas de direitos e obrigações”. Por sua vez, o Código de Processo Civil de 2015 veio consagrar a eleição de foro, ao disciplinar, em seu art. 63 que “as partes podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde será proposta ação oriunda de direitos e obrigações”.
De forma a reforçar a soberania da vontade das partes, a Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) incluiu o artigo 421-A no Código Civil que prevê a intervenção mínima do Judiciário nos contratos civis e empresariais, que se presumem paritários e simétricos.
Ocorre que a Lei nº 14.879/2024 de 04/06/2024 modificou o Código de Processo Civil de 2015 para, conforme ementa, “estabelecer que a eleição de foro deve guardar pertinência com o domicílio das partes ou com o local da obrigação e que o ajuizamento de ação em juízo aleatório constitui prática abusiva, passível de declinação de competência de ofício.” Para tanto, alterou a redação do §1º e incluiu o §5º no art. 63 do CPC/2015, estabelecendo limites ao foro de eleição. A mudança, segundo dito, buscaria combater o forum shopping, isto é, uma prática de escolha um foro mais vantajoso.
A modificação feita no art. 63 do CPC/2015 muda bruscamente o cerne da eleição de foro, e de imediato fez florescer debates acirrados sobre a sua aplicação, desde o impacto nas ações em andamento e nos contratos internacionais até a (in)constitucionalidade de modificação que afrontaria a autonomia da vontade (art. 5, caput e inciso I, CRFB) e ao princípio da liberdade econômica (art. 170 da CRFB), ao impor um limite para eleição de foro. Em função da extensão do tema, esse artigo se limitará a analisar as modificações realizadas, o impacto da mudança nas ações em andamento e nos contratos internacionais.
2. MODIFICAÇÕES NA REGRA DO FORO DE ELEIÇÃO
Prevê o art. 63, caput, do CPC/2015 que “as partes podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde será proposta ação oriunda de direitos e obrigações”.
Seu § 1º previa dois requisitos para que a eleição de foro surtisse efeito: i) constar em instrumento escrito; e ii) aludir expressamente a determinado negócio jurídico. A Lei 14.879/2024, por sua vez, ao alterar o referido parágrafo, somou aos dois requisitos tradicionais um terceiro requisito, qual seja, “guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor”. A inclusão deste requisito acaba por esvaziar o instituto e limita a escolha do foro eleito às hipóteses previstas no art. 53, III e IV do CPC.
Não fosse o suficiente, foi acrescido o §5º ao art. 63 do CPC, estabelecendo que o ajuizamento de ação em juízo considerado aleatório, qual seja, “sem vinculação com o domicílio ou a residência das partes ou com o negócio jurídico discutido na demanda”, constitui uma prática abusiva que justifica o declínio de competência de ofício pelo juiz.
Destaca-se que a possibilidade de o juiz reconhecer uma cláusula de eleição de foro como abusiva já era prevista no § 3º do mesmo artigo. Assim, eventual abusividade da cláusula de eleição de foro já vinha sendo combatida pelo Judiciário em análise das particularidades de cada caso, sendo pacífica na jurisprudência a possibilidade de anulação do foro eleito quando verificada a hipossuficiência de uma das partes .
Não sendo reconhecida como abusiva pelo juiz antes da citação, incumbiria ao réu citado alegar a referida abusividade em sede de contestação (§ 4º do art. 63) e, se assim não o fizesse, a competência estaria prorrogada em razão da preclusão na forma do que dispõe o artigo 65, CPC .
A prorrogação da competência do art. 65 mostra-se possível pois o foro de eleição, por ser fruto da vontade das partes, sempre foi considerado como matéria de competência relativa, prorrogável por força da preclusão que se opera pela ausência de alegação pelo réu no momento oportuno. Assim, ainda que o foro eleito não cumprisse os requisitos legais do art. 63, §1º do CPC, se não identificado pelo juiz a priori e não suscitado pelo réu, haveria a prorrogação da competência. E uma vez prorrogada a competência, não poderia a parte perdedora suscitar eventual nulidade para forçar uma rediscussão do mérito sub judice.
Ocorre que a introdução do §5º no art. 63 do CPC/15 vem gerando questionamentos até mesmo sobre uma possível modificação do tipo de competência para o foro de eleição. Enquanto o §3º, de forma mais branda, possibilita ao juiz, antes da citação, reputá-la ineficaz e remetê-la ao foro do réu, o novo parágrafo 5º parece ir além ao não mencionar um momento processual para a análise da cláusula e, à primeira vista, aparenta criar um poder-dever ao magistrado. Será certamente extremamente relevante verificar como a jurisprudência irá tratar o tema.
3. APLICABILIDADE DA NOVA LEI AOS CONTRATOS JÁ ASSINADOS E AOS PROCESSOS EM ANDAMENTO
Não há dúvidas de que a modificação ao CPC/2015 introduzida com a nova lei restringe a vontade das partes, limitando a sua escolha de foro àquelas já previstas no art. 53, III e IV do CPC/2015, sendo necessária a análise da constitucionalidade da mudança.
Para os fins do presente artigo, deixaremos de tratar da (in)constitucionalidade da mudança e discutiremos tema de extrema sensibilidade, especialmente no ramo do Comércio Exterior e Direito Marítimo: a extensão de sua aplicação e se poderia ser aplicada aos contratos assinados e processos distribuídos antes da modificação legislativa.
Aqueles que defendem não ser possível a aplicação da alteração legal no foro eleito já estabilizado sustentam que, qualquer alteração normativa, deve respeitar o princípio da irretroatividade das leis processuais (art. 5º, inciso XXXVI, CRFB e art. 6º, caput, da LINDB). Nesse sentido, a nova legislação não poderia afetar contratos já celebrados e ações já ajuizadas sob a vigência da regra anterior, como já decidido recentemente .
Ademais, tem-se que o critério de competência é determinado no registro/distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente (art. 43 do CPC/2015).
Nas palavras dos i. Professores LEONARDO GRECO e PAULO CEZAR PINHEIRO CARNEIRO, “a fixação da competência se esgota no ajuizamento da petição inicial. Se a lei nova é posterior, o ato consumado anteriormente conserva a sua eficácia originária até o encerramento do processo (princípio da irretroatividade das leis, inciso XXXVI do artigo 5º da CRFB), com as duas exceções previstas no final do artigo 43, do CPC, que não se aplicam à hipótese em estudo sempre o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, constituídos na vigência da lei anterior”.
Ainda, o Professor Cândido Rangel Dinamarco ensina que “(...) a intercorrência de certos fatores, entre os quais a vontade das partes pode modificar as regras ordinárias de competência territorial.” Ora, o interesse das partes, externalizado pela cláusula de eleição de foro, deve ser tutelado e respeitado pelo legislador e pelos julgadores ao tratar do foro competente.
Por outro lado, há algumas decisões no sentido de que a norma processual deve ser aplicada de forma imediata aos processos em curso, nos termos do artigo 14 do CPC, o que justificaria o declínio de competência de ações já em curso em que as cláusulas de eleição de foro não atendem as exigências do art. 63, §1º do CPC .
A gama de decisões conflitantes demonstra a complexidade da transição entre as antigas e as novas normas processuais e a necessidade de uma interpretação judicial clara para garantir a segurança jurídica e evitar práticas abusivas nos processos em andamento, o que provavelmente demandará um pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça em um futuro próximo.
4. POSSÍVEIS IMPACTOS NOS CONTRATOS INTERNACIONAIS
O contrato internacional, muito comum na seara marítima, é celebrado entre pessoas jurídicas de diferentes nacionalidades, com produção e entrega de produtos em diferentes países.
O C. Superior Tribunal de Justiça já explicitou que "A natureza internacional de um contrato, incluído o de seguro, decorre da sua conexão com mais de um ordenamento jurídico. Os elementos do contrato internacional podem ser identificados a partir da nacionalidade, domicílio e residência das partes, do lugar do objeto, do lugar da prestação da obrigação, do lugar da formalização da avença, do foro de eleição e da legislação aplicada ".
Assim, o contrato internacional possui uma mistura de jurisdições. Nesse sentido, o art. 25 do CPC buscou acabar com as discussões sobre a validade da cláusula de eleição de foro estrangeiro em contratos internacionais em caso de competência internacional concorrente ao determinar que “não compete à autoridade judiciária brasileira o processamento e o julgamento da ação quando houver cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro em contrato internacional, arguida pelo réu na contestação”.
Seguindo a disposição legal e antes da mudança ora discutida, o entendimento que prevalecia no E. Superior Tribunal de Justiça era pela validade da cláusula contratual que elege a Justiça de outro país para dirimir as controvérsias que vierem a ser suscitadas pelas partes .
Nesse sentido, a nova redação do artigo 63, §1º, do CPC/2015 cria obstáculos à livre escolha do foro, especialmente em contratos internacionais, que, muitas vezes, buscam um foro de competência neutra ou especializada para resolução das disputas. Isso porque o § 2º do art. 25 do CPC/2015 determina que é aplicável à hipótese do caput do art. 25 o art. 63, §§ 1º a 4º, o que parece tornar aplicável a necessidade da eleição de foro estrangeiro guardar pertinência com o domicílio ou com o local da obrigação para que seja válida. Vale notar, no entanto, que no referido § 2º do art. 25 não há menção ao novo §5º do art. 63.
Ademais, as modificações legais discutidas parecem também contrariar a Convenção de Haia sobre Acordos de Eleição de Foro (The Hague Convention on Choice of Court Agreements). A Convenção, que foi aprovada em 30/06/2005 e entrou em vigor em 01/10/2015, visa assegurar a efetividade da eleição de foro nos contratos comerciais internacionais atinentes a seguro marítimo, afretamento, construção e reparo de navios; financiamento, entre outros.
Muito embora o Brasil não tenha aderido a essa Convenção, até o momento 36 países ratificaram a Convenção, incluindo os países da União Europeia, Cingapura e México. Os Estados Unidos e China, que são grandes parceiros comerciais do Brasil, também assinaram a Convenção, embora ainda não a tenham ratificado.
Percebe-se, então, que a nova legislação vai na direção oposta das melhores práticas internacionais, o que poderá crias empecilhos à escolha do Brasil como sede para contratos internacionais e arbitragens.
5. CONCLUSÃO
A inclusão de cláusulas contratuais de definição do foro para resolução de conflitos em instrumentos jurídicos é comum e necessária em uma jurisdição que preza pela liberdade contratual, liberdade econômica, segurança à Justiça, devido processo legal e razoável duração do processo. A definição do foro eleito perpassa não só pelo atendimento dos interesses dos contratantes (neutralidade, celeridade e custo), mas à própria especialização existente em alguns tribunais.
Os impactos da alteração legislativa têm consequências não só nos contratos de direito civil e empresarial, mas também nos contratos internacionais e nos procedimentos arbitrais no que tange ao foro de eleição para medidas destinadas para a instauração da arbitragem, foro para a execução da sentença arbitral e foro para propositura de ação anulatória de sentença arbitral.
Em nota técnica do Instituto Brasileiro de Direito Processual e palestra do Professor e Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Alexandre Câmara , a mudança é considerada um retrocesso que distancia o Brasil das práticas mais modernas de direito processual no mundo.
A inovação legislativa, em um primeiro olhar, confunde os julgadores e impacta negativamente na atratividade do Brasil no cenário internacional ao interferir no ambiente de negócios de forma contraditória ao que vinha sinalizando a legislação ao privilegiar a vontade das partes.
Como a modificação legislativa é recente, muito ainda haverá por se discutir quanto à (in)constitucionalidade das novas redações e aguarda-se a interpretação e posicionamento que serão adotados pelo Judiciário na resolução de disputas.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei n.º 13.105, de 16 março de 2015. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília: DF, 2015;
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília: DF, 1973;
BRASIL. Código Civil. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Institui o Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro: RJ, 1916;
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988;
AVELINO, Murilo Teixeira. Modificações no art.63 do CPC via Lei 14.879/24: 6 pontos de preocupação. In:https://www.conjur.com.br/2024-jun-11/modificacoes-no-art-63-do-cpc-via-lei-14-879-24-6-pontos-de-preocupacao/,
https://www.conjur.com.br/2024-jun-11/modificacoes-no-art-63-do-cpc-via-lei-14-879-24-6-pontos-de-preocupacao/ 22/10/2024
CÂMARA, Alexandre Freitas e BEZERRA, Fernanda Tereza Melo. O novo § 5º do artigo 63 do CPC e suas incertezas; 24 de julho de 2024, 6h03; https://www.conjur.com.br/2024-jul-24/o-novo-%C2%A7-5o-do-artigo-63-do-cpc-e-suas-incertezas//acesasado em 14/10/2024.
DINAMARCO, Cândido Rangel; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Processo. 32 ed. Sâo Paulo: Malheiros, 2020, p. 301.
Mazzuoli, Valério de Oliveira, Curso de direito internacional privado, 6ª ad., Rio de Janeiro, Forense, 2023, p. 369.
Palestra ministrada na EMERJ, e que pode ser vista em https://www.youtube.com/watch?v=KBW7OruqG-Y.